A token economia surge no meio da revolução blockchain, uma tecnologia capaz de tokenizar e monetizar praticamente tudo no mundo.

Tokens: Blockchain Killer App

Token Economia

Os tokens são a unidade atómica da Web3 e são geridos coletivamente por uma ledger distribuída. Podem ser emitidos com apenas algumas linhas de código através de um contrato inteligente. Os contratos de token são ferramentas de gestão de direitos que podem representar desde uma reserva de valor até um conjunto de permissões no mundo físico, digital e legal. Podem afetar o mundo financeiro de forma semelhante ao modo como a Internet afetou o sistema postal.

Embora a existência de tokens em geral e de tokens digitais em particular não seja nova, a velocidade com que estes tokens criptográficos estão a ser implantados e emitidos é um indicador de que estes tokens podem ser a killer app de redes Blockchain. Desde maio de 2020, um ecossistema de mais de 5400 tokens criptográficos negociados publicamente estão listados na “CoinMarketCap” e um total de mais de 260.000 contratos de tokens de Ethereum foram encontrados na rede principal Ethereum. Estes tokens são frequentemente emitidos com apenas algumas linhas de código sob a forma de um contrato inteligente que é gerido coletivamente por uma rede Blockchain ou uma ledger distribuída semelhante. Como tal, representam a unidade atómica da Web3, representam uma parte “local” de todo o estado da rede. Todos os nós da rede têm a mesma informação sobre quem possui que tokens e a transferência desses tokens – a mudança de estado – é gerida coletivamente.

Um contrato de tokens é um tipo especial de contrato inteligente que define um pacote de direitos condicionais atribuídos ao detentor do token. São instrumentos de gestão de direitos que podem representar qualquer bem digital ou físico existente, ou direitos de acesso a bens que outra pessoa possua. Os tokens podem representar desde uma reserva de valor até um conjunto de permissões no mundo físico, digital e legal. Facilitam a colaboração entre mercados e jurisdições e permitem interações mais transparentes, eficientes e justas entre os participantes do mercado, a baixos custos. Os tokens podem também incentivar um grupo autónomo de pessoas a contribuir individualmente para um objetivo coletivo. Estes tokens são criados após prova de um determinado comportamento (ler mais: Capítulo 4 – Tokens Orientados para Fins Específicos).

A capacidade de distribuir tokens a baixo custo e sem esforço relativo numa infraestrutura pública representa uma mudança de paradigma, porque torna economicamente viável representar diversos tipos de bens e direitos de acesso de uma forma digital que poderia não ter sido viável antes. Exemplos podem ser a propriedade fracionária de arte ou bens imobiliários. Tal tokenização fracionária poderia melhorar a liquidez e a transparência dos mercados de ativos existentes. O aumento da tokenização dos ativos existentes e dos direitos de acesso poderia ter um impacto fundamental na dinâmica económica global, muito mais do que poderia ser visto numa fase tão precoce da Web3 (ler mais: Parte 4 – Tokens de Ativos e Propriedade Fracionária).

Pese embora os ativos digitais de última geração serem controlados por entidades centralizadas, podem agora ser emitidos com algumas linhas de código, e geridos por uma infraestrutura pública e verificável como uma rede Blockchain. Podem ser facilmente emitidos e comercializados em segurança numa infraestrutura pública sem um serviço de intermediação ou de caução. Os tokens podem proporcionar (i) mais transparência ao longo dos mercados do que os sistemas financeiros existentes atualmente oferecem. Isto poderia reduzir significativamente a fraude ou corrupção ao longo da cadeia de fornecimento de bens, serviços e transações financeiras. Os tokens também têm o potencial de (ii) reduzir os custos de transação de desenvolvimento, gestão e comercialização de ativos criptográficos ao longo de registos distribuídos, em oposição à gestão de ativos ao longo de sistemas de última geração. Como resultado, (iii) maior liquidez, menores custos de descoberta de preços e mercados menos fragmentados poderiam reduzir a fricção do mercado, permitindo mercados mais eficientes para certos ativos como a arte ou bens imobiliários. A Tokenização da economia poderia também permitir (iv) casos de utilização completamente novos, modelos de negócio e tipos de ativos que não eram economicamente viáveis antes e potencialmente permitir modelos de criação de valor completamente novos.

Enquanto cada vez mais pessoas começam a criar e a investir em tokens criptográficos, a compreensão dos diferentes tipos de tokens por aí fora ainda é limitada. Para aumentar a confusão, termos como “moeda criptográfica”, “ativos criptográficos” e “tokens” são muito frequentemente utilizados como sinónimos. Os meios de comunicação tendem sobretudo a referir-se a estes novos ativos como “criptomoedas”, que é frequentemente utilizada para descrever uma gama diversificada de “ativos criptográficos” ou “tokens” que podem representar qualquer coisa desde um bem físico, um bem digital, uma segurança, um colecionável, um royalty, uma recompensa, ou um bilhete para um concerto. Gostaria, portanto, de argumentar que o termo “criptomoedas” não é o ideal, uma vez que muitos destes novos bens nunca foram emitidos com a intenção de representar dinheiro em primeiro lugar. O termo “ativo criptográfico” seria um termo mais genérico que se poderia utilizar. O termo “token” está a tornar-se mais generalizado, uma vez que é mais genérico, abrangendo todos os tipos de token em vez de apenas os tokens garantidos por ativos.

 Embora a falta de terminologia e definições claras e acordadas seja bastante comum em domínios emergentes, a precisão na linguagem e terminologia é uma base para decisões informadas e discurso geral sobre o assunto. É importante compreender que ainda estamos a lançar um conjunto de termos sobrepostos para nos referirmos mais ou menos à mesma coisa, o que gera muita confusão. Este capítulo irá, portanto, tentar dar uma breve visão geral da história e das diferentes propriedades dos tokens criptográficos, de uma perspetiva técnica, jurídica e empresarial, clarificando alguns termos ao longo do caminho.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os tokens não são uma coisa nova e já existiam muito antes do aparecimento das redes Blockchain. Tradicionalmente, os tokens podem representar qualquer forma de valor económico ou direito de acesso. As conchas e missangas foram provavelmente os primeiros tipos de tokens utilizados. Outros tipos de tokens são, por exemplo, fichas de casino, vouchers, cartões-presente, pontos de bónus num programa de fidelização, tokens de coat-check, certificados de ações, títulos, bilhetes de concerto ou de entrada em clubes representados por um carimbo na sua mão, reservas para jantar, cartões de identificação, cartões de sócio de clubes ou bilhetes de comboio ou de avião. A maioria dos tokens têm algumas medidas anti-falsificação, que podem ser mais ou menos seguras, a fim de evitar que as pessoas enganem o sistema. O papel-moeda ou moedas também são tokens. Os tokens são ainda utilizados em informática, onde podem representar um direito de realizar uma operação ou gerir direitos de acesso. Um navegador da web, por exemplo, envia tokens para websites quando navegamos na web e o nosso telefone envia tokens para o sistema telefónico sempre que o utilizamos. Uma forma mais tangível de tokens de computador são os códigos de rastreio que se obtém para rastrear a sua encomenda com os serviços postais, ou códigos QR que lhe dão acesso a um comboio ou avião. Em psicologia, os tokens têm sido utilizados como um método de reforço positivo para incentivar o comportamento desejável nos pacientes, especialmente num ambiente hospitalar. A psicologia cognitiva utiliza tokens de recompensa como meio de troca que podem ser trocados por privilégios especiais no âmbito de uma estadia hospitalar. Outro exemplo de tokens de inventivos são os programas de fidelização de clientes que oferecem pontos de bónus pela utilização de uma companhia aérea que pode ser trocada por outros bens ou serviços.

Uma garrafa reciclável é um exemplo análogo de um token. Em alguns países, as garrafas que se compram nos supermercados são emitidas com o seu valor de reciclagem, normalmente de alguns cêntimos impresso nelas. Este valor de reciclagem é pago sobre o preço inicial do produto e tornou-se um método para os governos encorajarem a reciclagem de materiais e, subsequentemente, a redução do lixo em locais públicos. Após a devolução da garrafa, o valor de reciclagem será reembolsado. Perder a garrafa é, portanto, equivalente a perder dinheiro.

Um saco de lixo poderia também representar um token. Em algumas partes da Suíça, por exemplo, não se pode simplesmente deitar fora o lixo usando sacos de qualquer tipo. Tem de comprar sacos de plástico para fins especiais que incluem uma taxa de lixo, emitida pelas autoridades locais, e só pode utilizar esses sacos para deitar fora o lixo. Ao contrário da maioria dos outros países, onde paga a sua conta do lixo mensalmente, como parte da sua conta de serviços ligados com a sua casa, este sistema exige a compra de sacos de plástico para fins especiais.

Os tokens necessitam sempre de um substrato que garanta a sua validade, incluindo algumas medidas antifraude incorporadas. Historicamente, os tokens têm sido emitidos e geridos por entidades centralizadas, para assegurar a sua validade e têm tido mecanismos de segurança incorporados no substrato. Os bancos centrais que emitem moedas e notas precisam de se certificar de que os seus tokens, as moedas e as notas, são difíceis de copiar. O mesmo é válido para um organizador que emita bilhetes para um concerto. A validade e segurança dos tokens criptográficos é gerida pelo contrato inteligente que os criou, juntamente com a ledger distribuída subjacente por consenso maioritário dos nós da rede.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os tokens criptográficos são geridos por uma ledger distribuída e podem combinar todos os conceitos acima mencionados. Podem representar direitos de acesso a uma propriedade ou serviço que pode ser público (rede Bitcoin) ou privado (um apartamento que é arrendado por um particular). Representam um conjunto de regras, codificadas num tipo especial de contrato inteligente, também referido como contrato token. No contexto das redes Blockchain, os tokens não se manifestam como ficheiros digitais. Em vez disso, são representados como uma entrada na ledger e são mapeados para um endereço Blockchain que representa a identidade de Blockchain do detentor do token. Os tokens só são, portanto, acessíveis com um software de carteira dedicado que comunica com a rede Blockchain e gere o par de chaves públicas-privadas relacionadas com o endereço da Blockchain. Apenas a pessoa que tem a chave privada para esse endereço pode aceder aos respetivos tokens. Esta pessoa pode, portanto, ser considerada como o proprietário ou guardião desses tokens.[1] Se o código representa um ativo, o proprietário pode iniciar a transferência do token assinando-o com a sua chave privada. Se o token representar um direito de acesso a algo que outra pessoa possui, o proprietário desse token também pode iniciar o acesso assinando com a sua chave privada. O mesmo se aplica aos tokens que representam direitos de voto (ler mais: Parte 1 – Criptografia).

Os primeiros tokens de Blockchain foram os tokens nativos das redes Blockchain públicas e não-permissionadas. Estes tokens nativos – também referidos como tokens de protocolo – fazem parte do esquema de incentivos da infraestrutura da Blockchain. Com o advento da Ethereum, porém, os tokens subiram na escala tecnológica e podem agora ser emitidos na camada da aplicação. Tais tokens de aplicação podem ter comportamentos simples ou complexos ligados a eles. Ethereum tornou particularmente fácil a emissão de tokens com algumas linhas de código. Contratos inteligentes padronizados como a norma “ERC-20” definem uma lista comum de regras para os tokens Ethereum, incluindo a forma como os tokens são transferidos de um endereço Ethereum para outro e como os dados dentro de cada token são acedidos. Estes contratos de tokens gerem a lógica e mantêm uma lista de todos os tokens emitidos e podem representar qualquer bem que tenha características de um bem fungível. A grande maioria dos primeiros tokens emitidos na rede Ethereum foram tokens fungíveis em conformidade com o ERC-20. A fungibilidade refere-se ao facto de cada token ter um valor idêntico a qualquer outro token do mesmo tipo e poder ser facilmente trocado.

No entanto, no ano passado surgiram standards de tokens mais complexos que podem representar quaisquer bens ou direitos de acesso com propriedades especiais, incluindo identidades e direitos de voto. A “ERC-721” introduziu uma norma livre e aberta que descreve como emitir os chamados “tokens não-fungíveis” na rede Ethereum. Isto introduziu a era da construção de características mais complexas nos tokens. ERC-721 facilitou a criação de um token que representa qualquer tipo de colecionável, obra de arte, propriedade, direitos de acesso personalizados, ou direitos de voto. Estes tokens não fungíveis têm propriedades especiais que tornam o token único, ou que estão ligadas à identidade de uma determinada pessoa, e por isso representam bens menos fungíveis ou não-fungíveis e direitos de acesso. ERC-721 permite o aparecimento de um espectro muito mais rico de contratos inteligentes que excedem as possibilidades dos tokens fungíveis, que têm dominado a narrativa nos primeiros anos da tecnologia, abrindo caminho para um conjunto diversificado de casos de utilização.

Os diferentes sistemas de ledger têm padrões variáveis que são frequentemente incompatíveis. No momento da redação deste livro, os tokens emitidas numa rede são, na sua maioria, incompatíveis com outras redes e não podem cruzar diretamente as ledgers. As diferentes normas tornam atualmente inviável aos criadores de carteiras o fornecimento de carteiras múltiplas, o que significa que muitas vezes precisaremos de diferentes carteiras para gerir diretamente diferentes sistemas de tokens. Isto representa um ponto de estrangulamento no que toca à usabilidade. Contudo, a interoperabilidade e padronização de tokens são questões que estão a ser abordadas por protocolos de interoperabilidade como “Cosmos” e “Polkadot” e outros esforços de padronização a nível mundial. A interoperabilidade e a normalização influenciarão a potencial adoção em massa de tokens e os efeitos de rede resultantes.

[1] De um ponto de vista regulamentar, contudo, não é definitivamente claro se ou como é possível adquirir propriedade ou posse sobre tais tokens. Por conseguinte, conceitos como custódia precisariam provavelmente de modificações legais em muitas jurisdições.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Embora seja tecnicamente possível representar qualquer ativo presente na economia existente como um token criptográfico, ainda nos falta uma taxonomia adequada, e um quadro legal adequado que compreenda todo o âmbito e potencial deste novo substrato com o qual podemos emitir qualquer tipo de bem e direito de acesso, incluindo classes de bens completamente novas. Contudo, o estabelecimento de uma taxonomia consistente e fiável para as propriedades de token, bem como modelos de classificação, é a base a partir da qual os programadores, decisores políticos e investidores podem fazer mais sentido no que toca à concepção, aplicação, ou regulamentação dos tokens.

Estamos ainda na fase inicial da exploração de diferentes papéis e tipos de tokens. Muitas das terminologias que hoje utilizamos adaptar-se-ão às realidades dos casos de utilização emergentes e devem ser consideradas como temporárias. Com cada nova rede e cada nova aplicação do token, aprenderemos coletivamente por tentativa e erro sobre possíveis casos de uso de tokens criptográficos, e as classificações resultantes dos mesmos. A taxonomia aqui apresentada pretende dar uma visão ampla das diferentes propriedades e tipos de tokens, mas está longe de estar completa. É um grande quadro das questões económicas, técnicas e regulamentares mais importantes ligadas a esta taxonomia. A classificação das propriedades de um token é necessária para modelar tokens (perspetiva de desenvolvimento) e avaliar tokens (perspetiva do investidor). Uma classificação e taxonomia do próprio token seria questões jurídicas, empresariais, económicas e de ciências sociais. Uma taxonomia jurídica está ainda sujeita a uma jurisdição específica e estaria muito para além do âmbito deste livro.

A identificação de diferentes propriedades de um token pode ser utilizada como primeiro passo para afinar uma futura estrutura de classificação e também para conceber as propriedades de um token (ler mais: Parte 4 – Como Conceber um Sistema Token). Esta identificação de propriedades é o resultado de um processo chamado “análise morfológica”. É um quadro para estruturar as questões relevantes como uma primeira abordagem de uma forma heurística, especialmente útil para explorar todas as soluções possíveis para um problema complexo multidimensional e não quantificado. Gostaria, portanto, de introduzir as perspetivas mais importantes das quais podemos derivar as propriedades de um token: (i) perspetiva técnica; (ii) perspetiva dos direitos; (iii) perspetiva da fungibilidade; (iv) perspetiva da transferibilidade; (v) perspetiva da durabilidade; (vi) perspetiva regulamentar; (vii) perspetiva do incentivo; (viii) perspetiva da oferta; e (ix) perspetiva do fluxo do token.

 

 

Perspetiva Técnica: de uma perspetiva técnica, os tokens podem ser implementados em diferentes camadas da tecnologia, quer como (i) tokens de protocolo, (ii) tokens de segunda camada, como tokens de aplicação ou tokens criados numa cadeia lateral,[1] ou como (iii) tokens de ledger multi-ativos. Os tokens de protocolo, também referidos como tokens intrínsecos, nativos ou embutidos, têm um papel muito claro numa rede pública: manter a rede a salvo de ataques, atuando como incentivos de validação de blocos (recompensas para mineradores) e prevenir o spam nas transações. Os tokens nativos de protocolo podem ainda ser necessários para pagar as taxas de transação na rede e podem ser considerados como a “moeda” da Internet distribuída. Os tokens de aplicação, por outro lado, podem ter qualquer função ou propriedade. Podem representar qualquer coisa desde um bem físico, um bem digital, ou um direito de realizar uma ação numa rede ou no mundo real. A rede Ethereum tem um token de protocolo (ETH) e toda uma economia de tokens de aplicação que funcionam no topo da rede (ERC-20 e outros padrões de tokens Ethereum permitem a criação de tokens de aplicação com um contrato inteligente). Os tokens de segunda camada também podem ser emitidos por uma sidechain e são mais dominantes no ecossistema Bitcoin. As sidechains que permitem a criação de tokens de segunda camada são, por exemplo, “Elements“, “Liquid“, ou “Rootstock“. Estes interagem com uma Blockchain para gerir o estado dos tokens. Devido a efeitos de rede, o valor dos tokens de aplicação e outros tokens de segunda camada é suscetível de ser interdependente com o valor dos tokens nativos da Blockchain subjacente. Um exemplo disso é o valor de ETH (o token nativo da Ethereum), que aumentou na bolha de ICO de 2016 a 2017 devido à grande quantidade de ETH que era necessária para comprar tokens de aplicação emitidos através de ICOs (ler mais: Parte 3 – Venda de Tokens). Listas de vários tipos de tokens como “Ripple” e “Stellar” permitem a criação de vários tokens a nível nativo. Stellar permite a qualquer pessoa criar contratos token com todos os tipos de variáveis. Na Ripple (XRP), todos podem emitir qualquer tipo de tokens na rede, mas estão a ser emitidos como IOUs[2], essencialmente dívidas. O XRP é, portanto, considerado como crédito, razão pela qual alguns lhe chamam a “rede de crédito”. Para poder utilizar estes tokens, outros devem permitir a confiança na própria carteira, o que significa que se transfere a dívida. Ripple e Stellar podem, portanto, ser considerados como um veículo de liquidação para outros bens. Os tokens XRP e XLM são essencialmente tokens de protocolo, mas nas suas redes, são representações de outros ativos e essas representações são utilizadas para seguir créditos e dívidas num espaço de valor multidimensional. Pode-se pensar neles como redes nascentes de câmbio de divisas criptográficas.

 

 

Perspetiva dos Direitos: os tokens podem representar um direito a algum valor económico subjacente, seja digital ou físico, a longo prazo ou temporário. Um token pode representar (i) um direito a um bem que possuo, ou (ii) direitos de acesso limitado a bens ou serviços que outros possuem ou fornecem, ou (iii) um direito de voto. A definição económica de um bem é um recurso que tem um valor económico e é controlado por um indivíduo ou uma entidade jurídica ou um País. A definição legal de um bem é qualquer coisa que tenha valor monetário associado a ele. Direito de propriedade é o direito legal de posse de uma coisa, incluindo todos os direitos de utilização, tanto físicos como intelectuais. Em alguns países, a propriedade só é possível em relação a coisas físicas. Os direitos de utilização, ou direitos de acesso, são direitos contratuais de utilização de algo na posse de outra pessoa. Portanto, um token pode representar qualquer bem ou recurso, representando a propriedade de alguém ou o direito de utilização do referido recurso. Estes podem ser bens públicos ou privados, utilitários ou serviços de qualquer tipo.

Os “tokens de ativos” podem representar uma unidade de conta (fungível) ou um bem único (não-fungível). Os tokens fungíveis representam a propriedade de qualquer bem físico fungível, como moeda fiduciária, prata, gasolina, ouro, diamantes, ações de uma empresa, ou qualquer instrumento de dívida colateralizada. Podem ser comparados a “commodities” e são, por isso, por vezes referidos como “crypto-commodities”. Os tokens de ativos também podem ser únicos e, portanto, não-fungíveis. Alguns referem-se a eles como cripto-bens. Exemplos seriam os tokens de bens imobiliários, os bens colecionáveis, ou os tokens que representam peças de arte únicas. Representar um tal bem com um token torna o bem mais facilmente comerciável e divisível, criando assim mais liquidez para alguns bens que podem não ter sido tão facilmente comerciáveis off-chain.

Exemplos de “tokens de direitos de acesso” que são limitados no tempo ou no âmbito da utilização de um bem que outra pessoa possui ou de um serviço que outra pessoa presta podem ser um bilhete de entrada para um concerto, um bilhete de transporte público, acesso de partilha de apartamento, acesso de partilha de carro, uma marcação para uma consulta médica, acesso de membro a um clube, ou acesso a serviços de rede.

Os “tokens de credenciais” podem ser utilizados para atestar informações relacionadas com a identidade de pessoas, organizações e máquinas. São um pré-requisito para casos de utilização de direitos de acesso, tais como a verificação da idade de uma pessoa ou outros dados pessoais que lhe permita alugar um carro, comprar bebidas alcoólicas, embarcar num avião, entrar num quarto de hotel, votar, atravessar uma fronteira, receber um reembolso de impostos, ou obter um desconto, e muito mais.

“Tokens híbridos”: esta não é uma classificação binária, uma vez que muitos casos de utilização podem ser mais híbridos por natureza, como os direitos mineiros sobre um pedaço de terra, que são um direito de acesso, mas também representam um bem produtivo. Um security token que representa uma participação numa empresa poderia também incluir direitos de voto. Os tokens de protocolo nativos como Bitcoin (BTC) e Ether (ETH) podem ser vistos como ativos, mas também representam direitos de acesso à rede, uma vez que são necessários para pagar as taxas de rede.

 

 

Perspetiva da Fungibilidade: A fungibilidade refere-se à permutabilidade de uma unidade de um ativo com outras unidades do mesmo ativo. Podem ser exemplos disso quaisquer bens duradouros, tais como metais preciosos ou moedas. Os bens fungíveis têm duas propriedades chave: (i) só a quantidade importa, o que significa que unidades de bens fungíveis do mesmo tipo são indistinguíveis. (ii) qualquer quantidade pode ser fundida ou dividida numa quantidade maior ou menor, tornando-a indistinguível do resto. Se emprestar 10 EUR a alguém, por exemplo, não importa que essa pessoa devolva exatamente a mesma nota de 10 EUR ou outra, ou várias notas e moedas no valor de 10 EUR. O mesmo se aplica a um barril de petróleo bruto. A farinha é outro exemplo de um bem fungível e é também uma das razões pelas quais foi usada como moeda de consumo no passado. A fungibilidade é uma propriedade importante de qualquer moeda ou mercadoria para servir como reserva de valor, meio de troca e unidade de conta.

Do mesmo modo, os tokens criptográficos fungíveis podem representar quaisquer bens físicos ou digitais idênticos entre si e podem, portanto, ser facilmente substituídos. Não são únicos e são, portanto, permutáveis com outros tokens do mesmo tipo. Se duas partes tiverem a mesma quantidade, podem trocá-las sem perder ou ganhar nada. Os tokens únicos, por outro lado, não são fungíveis. Exemplos disso são cartões de identificação, ou um token que representa a propriedade de uma casa, um carro, uma peça de arte ou uma inscrição num ginásio. Os tokens não-fungíveis podem ser transferíveis ou não, dependendo do caso de utilização.

Quanto mais facilmente divisível for um token, mais fungível este será. Divisibilidade refere-se ao facto de se poder enviar uma fração do token para outra pessoa. No mundo real, muitos dos bens físicos não podem ser divididos, o que os torna menos facilmente negociáveis. Os tokens criptográficos podem representar bens que antes não eram facilmente divisíveis e podem agora ser fracionados a custos de transação mais baixos do que com os sistemas estabelecidos. Os bens físicos que não são divisíveis podem ser em primeiro lugar tokenizados e em seguida divididos e vendidos em diferentes partes. A propriedade fracionada dos tokens pode permitir um novo conjunto de classes de ativos, como bens imóveis ou arte e tornar esses ativos mais líquidos e fungíveis. Contudo, existem limitações práticas de reembolso de um bem representado, por exemplo, uma obra de arte. Embora em teoria, não haja limite para tornar os tokens divisíveis até 100 decimais, não é economicamente viável fazê-lo. As despesas gerais são enormes quando se lida com triliões de endereços que podem e vão conter restos de “poeira”. A poeira, neste contexto, refere-se a quantidades muito pequenas de tokens não gastos que muitas vezes não valem a pena transferir, uma vez que as taxas de transação podem ser mais elevadas do que a poeira vale. Há um ponto em que a utilidade marginal da divisibilidade extra é compensada pelo esforço computacional extra (armazenamento e largura de banda). Além disso, os ataques de poeira, em que quantidades minúsculas de tokens são enviadas para endereços aleatórios para que possam ser facilmente rastreados, seriam mais viáveis.

Perspetiva da Privacidade: ao contrário da opinião comum, a rede Bitcoin não proporciona total anonimato, e consequentemente a privacidade, mas sim pseudonimato. Isto significa que se pode usar o poder dos grandes dados para correlacionar outros pontos de dados, que podem estar publicamente disponíveis ou acessíveis a certas agências de segurança nacionais, com os metadados ligados a uma determinada transação e endereço BTC. Se alguém por detrás de um endereço Bitcoin se tornar uma pessoa de interesse e a proveniência do histórico dos seus tokens se tornar manchada ou colocada numa lista negra, essa pessoa poderá ter problemas em vender os seus tokens. Nesses casos, as autoridades poderiam correlacionar o seu endereço Bitcoin com outros pontos de dados mais tradicionais que estão sujeitos aos regulamentos de “conhecimento do seu cliente” (KYC), como bancos e Exchanges, ou mesmo plataformas de comércio eletrónico como a Amazon. Se pagasse pela sua compra na Amazon com bitcoin, por exemplo e os seus tokens tivessem um historial que fosse manchado, a Amazon poderia decidir não o aceitar. A privacidade, e como resultado também a fungibilidade do bitcoin e tokens similares, pode, portanto, estar em debate. Se o histórico de um token puder ser rastreado e esse token estiver ligado a atividade ilícita que o tornaria “manchado”, o seu papel como meio de troca estará limitado. Redes Blockchain mais recentes como “Zcash” e “Monero” estão a trabalhar com ferramentas criptográficas alternativas que poderiam tornar os seus tokens mais privados e, portanto, mais fungíveis (ler mais: Tokens de Privacidade).

 

 

Perspetiva da Transferibilidade: os tokens podem ser transferíveis ou não-transferíveis, ou ter capacidade de transferência restrita. Os tokens únicos (não-fungíveis) podem ser transferíveis ou não-transferíveis, dependendo do caso de utilização. Um bilhete de avião pode ser transferível ou intransferível, dependendo do tipo de bilhete comprado. Uma peça de arte ou o papel de registo do seu carro, por exemplo, são únicos, mas transferíveis. Os tokens de identidade como certificados ou licenças são normalmente intransferíveis. Um token que lhe permita ir buscar os seus filhos ao infantário é único, mas pode ter a transferibilidade limitada ou temporária que lhe permita arranjar outra pessoa para ir buscar os seus filhos, concedendo temporariamente direitos de recolha a essa pessoa. Embora os tokens fungíveis tendam a ser transferíveis na maioria dos casos, existem também exceções à regra.

 

 

Perspetiva da Durabilidade: em economia, a durabilidade refere-se à capacidade de uma moeda suportar o uso repetido. Isto significa que o substrato dessa moeda não deve desaparecer facilmente, apodrecer ou decompor-se. Metais ou alimentos duráveis como o trigo têm alta durabilidade e por isso foram frequentemente utilizados como moeda de consumo. O token bitcoin e os tokens de protocolo similares provaram até agora resistir ao tempo, sendo resistentes a qualquer tipo de censura ou ataque de rede. Espera-se que uma rede resiliente contribua para um valor “relativamente” estável a longo prazo do token. Se for possível correlacionar a resiliência da rede com o valor do token de rede, pode-se esperar que o token seja durável, uma vez que não deixará de existir. Enquanto a rede for robusta e utilizada, novos tokens serão cunhados e a procura de tokens irá aumentar. Os preços dos tokens poderão diminuir devido a flutuações de preços, mas o token enquanto tal não desaparecerá enquanto a rede estiver intacta. Uma rede com um fraco protocolo de consenso, por outro lado, poderá ser atacada e manipulada, caso em que os detentores de tokens poderão perder os seus tokens se a ledger for adulterada.

Perspetiva da Regulamentação: a regulamentação é um tema complexo que poderia cobrir um livro por si só, especialmente tendo em conta todas as mais de 200 jurisdições do mundo. Para simplificar, neste ponto, basta dizer que os reguladores precisam de uma taxonomia clara dos diferentes tipos de tokens para compreender o que estão potencialmente a regular. As autoridades reguladoras em todo o mundo estão a recuperar o atraso para compreender todo o potencial e implicações da Web3 e das suas aplicações tokenizadas. Enquanto alguns tokens podem representar classes de ativos completamente novas, como os tokens de protocolo nativos que muitas vezes têm funções híbridas e não são fáceis de classificar, outros tipos de tokens podem representar ativos da economia existente que são compreendidos e regulados. Um exemplo de ativos que são fáceis de classificar ou regular são os títulos tokenizados e outros ativos (ler mais: Parte 4 – Token de Ativos e Propriedade Fracionada). Em casos mais complexos, os empresários serão confrontados com incertezas de como o regulador poderá classificar retroativamente o token. Para proporcionar certeza regulamentar aos empresários, algumas jurisdições começaram a oferecer ambientes de testes (“sandboxes”) governamentais para garantir a inovação, permitindo ao mesmo tempo um processo de aprendizagem regulamentar.

Perspetiva do Incentivo: ao contrário dos tokens que representam bens existentes ou direitos de acesso a bens ou serviços de outra pessoa, os tokens também podem ser programados para incentivar uma nova forma de criação de valor coletivo. Podem ser usados para incentivar o comportamento individual ou contribuir para um objetivo coletivo de um grupo de pessoas, se e quando se fornecer prova de contribuir para um objetivo coletivo. Os tokens bitcoin e outros tokens de protocolo similares são um bom exemplo para tais tokens. Programas de recompensa ou programas de fidelização são outro exemplo de tokens que são concebidos para recompensar o comportamento. Embora incentivar o comportamento não seja um conceito novo, os tokens criptográficos têm estimulado muita inovação em torno de tokens com objetivos específicos que incentivam comportamentos, tais como tokens de CO2, tokens de banco de tempo, tokens de redes sociais, tokens de atenção, etc.

Perspetiva do Supply de Tokens: os tokens de protocolo variam nas suas estratégias de fornecimento de tokens. O fornecimento de tokens bitcoin está regulamentado no protocolo e limitado a 21 milhões. A rede Ethereum, por outro lado, não definiu previamente o fornecimento de tokens da mesma forma (ler mais: Parte 2 – Economia Institucional das DAO). Para os tokens que representam um direito de acesso, o número de tokens é normalmente limitado à capacidade e frequência máximas do fornecedor de acesso. O único limite é a capacidade de um sistema, tal como a capacidade de um autocarro numa rede de transportes públicos, que pode sempre ser alargada se necessário, na maioria das vezes incluindo um desfasamento temporal. Muitos dos tokens listados no “CoinMarketCap”, especialmente os que foram utilizados para a venda antecipada de tokens para angariar fundos, têm um fornecimento limitado de tokens. Isto é especialmente verdade para os tokens que representam a participação no capital de uma rede. Os tokens de ativos são naturalmente limitados pela quantidade de ativos disponíveis para os apoiar. Qualquer token com um fornecimento limitado poderia potencialmente servir “de-facto” como reserva de valor e meio de troca, dependendo da durabilidade esperada, volatilidade a curto prazo e fungibilidade.

Perspetiva da Estabilidade: a estabilidade de valor a curto prazo é uma das funções mais importantes de um meio de troca, para que possa servir como unidade de conta e é fundamental para o planeamento económico. Embora a Bitcoin tenha introduzido um algoritmo de consenso inovador, vem com uma política monetária rudimentar que simplesmente regula e limita a quantidade de tokens cunhados ao longo do tempo. O protocolo não fornece um algoritmo económico que garanta a estabilidade dos preços. Dependendo do tipo de token concebido, a estabilidade de preços pode ser desejável, especialmente no caso de tokens de pagamento que se destinam a ser utilizados como meio de troca do dia a dia. Se a estabilidade de preços for necessária, novos mecanismos terão de ser incorporados em consonância com tal necessidade, no mecanismo do token.

Perspetiva de Fluxo de Tokens: outra dimensão gira em torno da questão do fluxo de tokens. Os tokens podem ser criados para um único propósito e destruídos quando o propósito tiver sido cumprido para completar o ciclo. Neste caso, eles fluem em linha reta desde a fonte até à pia. Exemplos disso são as fichas de casino que podem ser utilizadas dentro da esfera do casino e são emitidos contra a moeda Fiat. Quando os jogadores deixam o casino, podem converter as fichas de volta para a moeda local. Os bilhetes de transporte que pagam pelo acesso a um sistema e expiram após uma utilização única, ou após um período de tempo, são outro exemplo. São destruídos no momento do consumo ou após uma determinada data de validade. O seu fornecimento é ilimitado, ou está limitado às capacidades infraestruturais. Por outro lado, pode-se dizer que os tokens que podem ser trocados indefinidamente, sem uma condição de expiração artificial, têm um fluxo circular. A maioria dos tokens de ativos que são transferíveis e não têm data de expiração, como qualquer moeda ou token de mercadoria ou arte tokenizada, têm fluxos circulares de tokens. Os tokens com um fluxo circular só se afundarão quando as chaves privadas foram perdidas ou se o bem físico subjacente for acidentalmente destruído.

Perspetiva Temporal: outra questão ao conceber um token é se o token tem uma data de expiração. Qualquer token fungível pode ser programado de forma a expirar após uma determinada data, para evitar o açambarcamento dos tokens. Em termos práticos, o token expiraria; em termos técnicos, o token mudaria de ”Estado”. Os pontos de bónus dos programas de fidelização têm normalmente com uma data de expiração. No passado, algumas moedas regionais, como o “Wörgl Schwundgeld” (Áustria) na década de 1930, experimentaram uma deflação embutida da sua moeda para evitar o açambarcamento e a inflação. Esta moeda foi introduzida como uma moeda paralela que só podia ser gasta na região de Wörgl. Ao perder 1 por cento do seu valor em cada mês, as despesas individuais eram encorajadas enquanto a poupança era desincentivada. Esta medida foi introduzida para combater uma política deflacionária a nível nacional e ajudou tanto o número de desempregados como o investimento em infraestruturas.

[1] As sidechains são Blockchains separadas, compatíveis com a chain principal e têm sido utilizadas para resolver problemas de escalabilidade em Bitcoin (ler mais em Sidechains: Anexo – Soluções de Escalabilidade)

[2] Abreviatura de “I Owe You”, uma promessa escrita de que pagará algum dinheiro que lhe foi emprestado. Trata-se de um documento informal que reconhece a dívida. Normalmente especificam o devedor, o montante em dívida e, por vezes, o credor. Diferem das notas promissórias na medida em que não especificam as condições de reembolso, como o momento do reembolso.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os tokens não-fungíveis (NFT – Non-Fungible Tokens) são de natureza única, com propriedades variáveis que podem ser distinguidos uns dos outros. Os NFT podem representar bens digitais, únicos, e, portanto, escassos, tais como arte e outros bens colecionáveis ou imóveis. Os NFT podem também representar identidades e certificados, tais como licenças, graus académicos, chaves, passes, identidades, testamentos, direitos de voto, bilhetes, tokens de fidelização, direitos de autor, garantias, licenças de software, dados médicos, e certificados de qualquer tipo, tais como cadeias de abastecimento ou certificados de arte. Antes do aparecimento da Web3, os sistemas de identificação e certificação, bem como os ativos únicos e escassos, eram dispendiosos de gerir, pois dependiam da validação e segurança das entidades emissoras centralizadas. Os registos distribuídos, por outro lado, permitem uma infraestrutura descentralizada e verificável publicamente para emitir e gerir estes ativos a custos operacionais muito baixos.

Em 2013, “Colored Coins” foi um dos primeiros projetos que tentou anexar propriedades únicas a um token. A ideia era utilizar tokens bitcoin para representar bens do mundo real como ações, obrigações, mercadorias, ou a escritura de uma casa. “Counterparty” foi outro projeto que se baseou nesta ideia, mas foi um passo mais à frente. Permitiu aos utilizadores criar os seus próprios bens virtuais em cima da rede Bitcoin. Com o surgimento da rede Ethereum, ambos os projetos lutaram para obter uma ampla adoção. Os NFT começaram a atrair muita atenção quando foi introduzido o padrão de tokens ERC-721, especialmente após o sucesso dos “Crypto Kitties“, um jogo na rede Ethereum onde os jogadores podem colecionar e criar gatos digitais, e onde o “código genético” digital único de cada gato é armazenado na ledger da Ethereum.

O token ERC-721 permite atributos mais detalhados que tornam um token especial, para além dos atributos que podem ser encontrados nos tokens ERC-20. Permite a inclusão de metadados sobre um bem e informação sobre a propriedade. Quando validada, essa informação adicional pode acrescentar valor, garantindo a proveniência da arte, dos bens colecionáveis, ou ao longo da cadeia de fornecimento de outros bens e serviços. O sucesso do ERC-721 provavelmente também desencadeou outros projetos de Blockchain, tais como a rede NEO, para desenvolver os seus próprios padrões de tokens não-fungíveis.

Cripto-colecionáveis e Cripto-jogos: os cripto-colecionáveis permitem a tokenização de bens únicos, quer de colecionáveis virtuais, quer de colecionáveis do mundo real. Os NFT podem ser utilizados para representar qualquer ativo dentro do jogo, de forma a permanecerem sob controlo do utilizador em vez do criador do jogo. Os Cripto Kitties despertaram muita atenção para esta nova classe de ativos na altura em que entupiram a rede Ethereum. A Major League Baseball nos EUA lançou “MLB Crypto”; agora, “MLB Champions” é um dos poucos jogos baseados em Blockchain no Google Play onde itens digitais únicos podem ser comercializados fora do próprio jogo em mercados como o “Opensea“. Apenas para ter uma ideia do quanto já está em desenvolvimento, aqui está uma seleção de jogos, colecionáveis, e mercados que os comercializam: “Cryptofighters“, “Decentraland“, “Etherbots“, “Ethermon“, “Gods unchained“, “Plasmabears“, “0xUniverse“, “Hyperdragons“, “Loom”, “Spells of Genesis“, “Crafty“, “Superrare“, “FlowerToken“, “Unico“, “OpSkins“, ou “Rarebits“.

Tokens de Ativos: os tokens de ativos permitem investimentos únicos ligados a um objeto físico, como obras de arte únicas, bens imóveis, ou quaisquer outros ativos e títulos do mundo real. Poder-se-ia tokenizar um edifício, onde alguns tokens poderiam conceder títulos de propriedade simples de uma fração do bem imobiliário, enquanto outros tokens poderiam conceder privilégios especiais como direitos de acesso. Os tokens não-fungíveis podem também ser utilizados para representar obras de arte. Tal tokenização de ativos existentes no mundo real pode dar aos investidores uma oportunidade de expandir a sua carteira e fornecer mais liquidez ao mercado. Os NFT podem conceder aos detentores de tokens diferentes níveis de controlo sobre os seus ativos (ler mais: Parte 4 – Tokens de Ativos e Propriedade Fracionária).

Tokens de Identidade, Certificados e Reputação: qualquer coisa que represente de forma única uma pessoa, pode ser representada como um token não-fungível: qualquer tipo de identificação ou certificado como históricos escolares, diplomas universitários, ou licenças de software que estejam ligados à existência de uma única pessoa. Um diploma poderia ser emitido e gerido coletivamente por uma ledger distribuída sem necessidade de ser traduzido, autenticado manualmente, ou verificado. Um software semelhante a uma wallet poderia gerir todos os dados pessoais sem a necessidade de instituições centralizadas armazenarem os nossos dados. O token representaria um recipiente para informações de identidade relacionadas com uma pessoa específica, sem dar informações sobre o que é identificado. Os pedidos de certificação podem ser associados ao token, que seria emitido pelas entidades de confiança que emitem estas certificações. Se corretamente concebidos, os tokens de reputação poderiam ser associados a identidades e resolver desafios como as “fake news“.

Tokens de Acesso: NFT pode ser utilizado para gerir qualquer tipo de direito de acesso que esteja ligado a uma pessoa especial, um bem especial, ou um evento especial. Ledgers distribuídas geridas coletivamente utilizando criptografia de chave pública podem oferecer uma gestão de direitos de acesso mais segura e descentralizada do que soluções de gestão de direitos de acesso digitais geridos centralmente e podem substituir chaves físicas, chaves digitais, e palavras-passe.

Tokens de Transferência: quando nos dias de hoje alguém falece, a herança precisa muitas vezes de ser dividida entre várias pessoas, o que pode produzir consideráveis despesas burocráticas e custos de coordenação para dividir o valor destes bens. Isto é especialmente verdade no caso de bens intangíveis que têm um longo processo de liquidação antes de o valor poder ser dividido entre os beneficiários. Embora a propriedade fracionada seja possível hoje em dia, os tokens de transferência geridos por uma ledger distribuída diminuiria em larga escala os atritos existentes nas transferências de bens testamentários.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Numa economia de mercado baseada na divisão do trabalho, o papel do dinheiro emitido pelos órgãos governamentais é facilitar a troca de bens e serviços. O dinheiro torna a troca económica muito mais eficiente do que as economias de dádiva e economias de permuta, evitando as ineficiências de tais sistemas como o problema da “coincidência de vontades”. [1]

Existe uma concepção errada generalizada de que as moedas criptográficas, como o bitcoin, e os tokens nativos das Blockchains são moedas comparáveis às moedas fiduciárias (Fiat), como o EUR, USD ou YEN, que são emitidas pelos bancos centrais dos Estados-Nação. A referência a tokens como “moedas” suscita muita controvérsia e não é totalmente verdadeira. Embora os tokens de protocolo nativos e alguns tokens de ativos tenham certas propriedades do dinheiro, eles têm mais semelhança com o dinheiro-mercadoria (commodity money) ou dinheiro representativo, mas não tanto com o dinheiro “Fiat” moderno. O maior desafio que enfrentamos quando tentamos explicar ou falar sobre tokens criptográficos advém do facto de estarmos a tentar explicar novos fenómenos através da terminologia antiga. Usar a terminologia antiga para explicar novos fenómenos nem sempre faz justiça a toda a gama de possibilidades que esta nova tecnologia tem para oferecer. Para poder desenhar semelhanças e fazer distinções precisas, é importante compreender a evolução histórica do dinheiro, assim como a finalidade e as funcionalidades do dinheiro.

O principal objetivo do dinheiro é facilitar uma troca económica de bens e serviços dentro e entre economias. Ele torna a troca económica muito mais eficiente do que economias de dádivas e economias de permuta, evitando as ineficiências de tais sistemas como o problema da “coincidência de vontades”. O problema da coincidência de vontades refere-se à improbabilidade de duas partes, cada uma das quais possui bens diferentes, poderem chegar a um acordo, a menos que cada parte queira o bem específico que a outra parte oferece, ao mesmo tempo. Para mitigar este problema, pode-se chegar a um acordo sobre um bem universal de valor como meio de troca. Conchas, metais preciosos ou gado foram usados pela primeira vez como tais ativos para combater as ineficiências de uma economia de permuta. Com o tempo, porém, desenvolveram-se meios de troca artificiais mais neutros, que começamos a denominar de dinheiro. O dinheiro provou ser uma tecnologia eficiente para intermediar a troca de bens e serviços, fornecendo uma ferramenta para comparar valores de objetos diferentes.

O dinheiro precisa servir como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta na qual a dívida possa ser denominada. Ela fornece uma base para os preços de mercado, que são necessários para um sistema contabilístico eficiente e a base para a formulação de acordos comerciais. Uma moeda é um sistema de dinheiro de um grupo fechado de pessoas, como um Estado-Nação, muitas vezes servindo como moeda com curso legal dentro dessa nação. Se uma moeda tem o status de curso legal, é uma unidade a partir da qual as dívidas são denominadas num Estado-Nação pelo seu sistema legal. Tendo curso legal, ela representa uma forma aceite de cumprir uma obrigação financeira como resultado de atividades económicas e liquidar uma dívida dentro dos limites geográficos daquele Estado-Nação. No entanto, a definição exata de curso legal varia ao longo das jurisdições.

 

Propriedades do Dinheiro

As propriedades do dinheiro incluem liquidez, fungibilidade, durabilidade, portabilidade, cognoscibilidade e estabilidade. O dinheiro também precisa de algumas medidas antifraude incorporadas para evitar a falsificação.

Liquidez refere-se ao facto de que o substrato que representa o dinheiro deve ser facilmente negociável, com baixos custos de transação.

Divisibilidade e Portabilidade referem-se ao facto de que os ativos devem ser facilmente transportáveis. Pese embora um barril de petróleo seja divisível e durável, o petróleo não é facilmente transportável em barris. Em comparação com um barril de petróleo, uma barra de ouro é igualmente durável, mas mais fácil de transferir. No entanto, no que toca à divisibilidade, o processo de fusão e cunhagem de uma barra de ouro em unidades menores, tem um custo elevado.

Fungibilidade refere-se ao facto de as unidades de dinheiro serem iguais. Todos os tokens dessa moeda devem ser tratados igualmente, mesmo que até tenham sido utilizados para fins ilegais por proprietários anteriores. Isto serve para proteger os direitos dos destinatários inocentes desses tokens, que podem não ter conhecimento das atividades ilegais. A fungibilidade não é assegurada se um token puder ser censurado ou colocado na lista negra com base no comportamento dos anteriores detentores dos tokens.

Durabilidade refere-se à capacidade de suportar o uso repetido para que possa servir como reserva de valor. O dinheiro deve ter a capacidade de ser guardado, armazenado e recuperado de forma confiável, e ser previsivelmente utilizável como meio de troca quando recuperado. Isto significa que o substrato dessa moeda não deve desaparecer ou degradar-se facilmente. Metais ou alimentos duráveis como trigo, farinha e açúcar têm alta durabilidade e, portanto, foram frequentemente usados como moeda de consumo; foram considerados preciosos para quase todos os membros da sociedade e como uma solução para o problema da “coincidência de vontades”.

Estabilidade refere-se ao facto de que o valor não deve sofrer muitas flutuações; caso contrário, não será capaz de servir como uma reserva de valor confiável. Sem uma reserva de valor confiável, o planeamento económico de famílias e empresas, mas também de governos, será difícil. A alta volatilidade é contraproducente para a confiança em preços futuros, salários, dívidas e, portanto, comércio. A inflação reduz o valor do dinheiro e, como resultado, a sua capacidade de funcionar como uma reserva de valor. Se os níveis de preços subirem, cada unidade de moeda comprará menos bens e serviços, estimulando o consumo de curto prazo. A deflação, por outro lado, diminui os níveis gerais de preços dos bens e serviços, estimulando a poupança na perspetiva de ganhos futuros.

Cognoscibilidade refere-se ao facto de o valor de um token enquanto moeda dever ser facilmente identificável. Como meio de troca, o dinheiro tem de ser continuamente entregue, e causará grandes inconvenientes se cada pessoa que o recebe tiver de o escrutinar, pesar e testar.

 

Tipos de Dinheiro

Diferentes tipos de dinheiro têm evoluído ao longo do tempo. Nas economias modernas, o tipo de dinheiro dominante é o dinheiro “Fiat”, ou fiduciário. Antes da existência das moedas Fiat dos dias modernos, o dinheiro-mercadoria e o dinheiro representativo eram de utilização generalizada.

O dinheiro-mercadoria é qualquer objeto que tenha um valor intrínseco e padronizado numa economia local. O valor monetário desse dinheiro-mercadoria deriva da mercadoria da qual é feita: moedas de ouro, moedas de prata e outras moedas metálicas raras, sal, cevada, peles de animais ou cigarros. Antes de ser proibido fumar em algumas prisões, os cigarros eram usados, entre outros, como moeda clandestina, para depois serem substituídos por latas de atum, sopas instantâneas e objetos similares duráveis e portáteis de alto valor para os prisioneiros. O preço é determinado pela comparação do valor percebido da mercadoria com o valor percebido de outros produtos.

O dinheiro representativo, por outro lado, é um meio de troca que representa algo de valor, mas que tem pouco ou nenhum valor por si só. É um crédito sobre uma mercadoria: certificados de ouro ou prata, ou papel-moeda subordinado às reservas de ouro. Os tokens de ativos também representam um bem físico e podem ser classificadas como dinheiro-mercadoria.

O dinheiro fiduciário é estabelecido por regulamentação governamental, semelhante a qualquer cheque ou nota de dívida. A moeda fiduciária, como as moedas e notas que usamos hoje, não tem um valor físico intrínseco como uma mercadoria. O seu valor facial, que é denominado na nota, é maior do que a sua substância material. “Ela deriva o seu valor ao ser declarada por um governo como tendo curso legal. Deve ser aceite como forma de pagamento dentro dos limites do país, para todas as dívidas, públicas e privadas… A massa monetária de um país é constituída por moeda (notas e moedas) e, dependendo da definição particular utilizada, por um ou mais tipos de moeda bancária (os saldos mantidos em contas correntes, contas de poupança e outros tipos de contas bancárias). A moeda bancária, que consiste apenas em registos (na sua maioria informatizados na banca moderna), constitui, de longe, a maior parte da massa monetária nos países desenvolvidos”[2] Nas economias modernas, a maior parte do dinheiro em circulação já não está representado sob a forma de notas e moedas, mas sim numa entrada nos registos contabilísticos digitais de um banco, administrando dinheiro economizado em contas correntes, e sob a forma de outros instrumentos financeiros. O valor atribuído resulta do facto de que os governos podem usar o seu poder para impor o valor de uma moeda fiduciária (“Fiat“).

As moedas fiduciárias têm evoluído ao longo do tempo. Embora no passado as notas e moedas tinham o seu valor subordinado a mercadorias escassas como ouro e outros metais preciosos, o padrão-ouro foi abolido. Atualmente, quase nenhuma moeda está vinculada a mercadorias. Os bancos centrais influenciam a oferta de moeda com a política monetária, emitindo mais ou menos dinheiro através da emissão de crédito, como acharem melhor. No entanto, muitos economistas argumentam que as moedas fiduciárias, na maioria das economias estáveis, são subordinadas ao valor coletivo da atividade económica subjacente de uma nação, medido pelo seu produto interno bruto (PIB).

 

 

Dinheiro ou não?

A Bitcoin foi originalmente concebida com o objetivo de criar dinheiro P2P sem bancos, tendo a rede de pagamentos P2P subjacente provado ser uma porta de entrada para um novo tipo de criação de valor económico. O protocolo Bitcoin foi concebido para incentivar as contribuições individuais para um bem coletivo, uma rede de pagamentos P2P pública e não-permissionada. Usando o vocabulário de um engenheiro informático o protocolo fornece um sistema operacional para um novo tipo de economia. Usando o vocabulário de um cientista político, o protocolo representa a base constitucional para uma tribo distribuída da Internet que mantém coletivamente essa rede, um grupo de participantes voluntários que transcende as fronteiras geográficas dos estados nacionais. Os tokens bitcoin podem ser considerados como a moeda com curso legal da rede Bitcoin, sendo a única forma de pagamento aceite dentro da rede. O BTC é também necessário para pagar os custos de transação na rede. Eles não podem ser pagos com dinheiro Fiat como USD, EUR, ou outros tokens criptográficos que não o bitcoin. O preço do token de rede deve refletir a estabilidade da rede de pagamento, de forma semelhante ao valor das moedas “Fiat“, que deve refletir as atividades económicas de um país.

Os tokens de protocolo têm certas propriedades do dinheiro, no entanto, parecem ter mais semelhanças com o dinheiro-mercadoria ou dinheiro representativo do que com o dinheiro Fiat. O processo de produção é distribuído (semelhante às mercadorias da vida real) e o preço é determinado pela oferta e pela procura, estando assim sujeito a flutuação (tal como o preço dos tokens, que são determinados pela oferta e pela procura nas exchanges). Ao contrário das moedas Fiat, nenhuma entidade centralizada como governos e bancos centrais pode influenciar o preço ou a acessibilidade dos tokens de protocolo. O controlo é, portanto, distribuído, tal como com as mercadorias, onde nenhum governo ou outra entidade controla a extração de ouro, prata, petróleo, etc. A quantidade de controlo que determinada pessoa tem no sistema está sujeita às regras de criação de tokens definidas no protocolo. A política de criação e fornecimento de tokens (política monetária da rede) é o ponto central que só pode ser alterado por consenso maioritário de todos os atores da rede na forma de uma atualização de software. O protocolo tem, portanto, funções de um banco central. Os potenciais “contratos inteligentes do banco central” podem ser responsáveis por uma política monetária mais adaptativa do que a que a rede Bitcoin proporciona. Estas tendências para tornar a política monetária de um token mais adaptativa e estável estão a emergir (ler mais: Parte 3 – Tokens Estáveis).

Embora a produção distribuída e o controlo se apliquem aos tokens de protocolo, isso não é necessariamente verdade para os tokens de aplicação. Os tokens de aplicação ou os tokens de sidechain são frequentemente emitidos por uma entidade centralizada, uma empresa privada ou uma fundação. Os tokens que estão vinculados a um ativo, ou a um título, também podem ter semelhanças com o dinheiro-mercadoria. Ao contrário das commodities que já têm vindo a ser negociadas em sistemas legados, os tokens de ativos podem fornecer uma liquidez muito maior devido à infraestrutura de liquidação sem atritos que uma ledger distribuída fornece. Isto pode ser especialmente verdade para os tokens de ativos que representam ativos da vida real e que atualmente não têm alta liquidez de mercado, ou bens que dificilmente têm um mercado. Os tokens de ativos tornam o ativo subjacente mais negociável, embora o próprio ativo permaneça ilíquido. A tokenização de ativos pode converter “fundos não-bancáveis” em “fundos bancáveis”. Fundos não-bancáveis são ativos que não são aceites como método de pagamento num banco. Fundos bancáveis são formas de pagamento que são aceites em instituições financeiras e facilmente liquidadas em moedas locais, como cheques e ordens de pagamento. Podem ser convertidos em dinheiro a curto prazo e são geralmente aceites pelos comerciantes como um método de pagamento. À luz de uma potencial “tokenização” generalizada, qualquer ativo tokenizado poderia receber o status de um “fundo bancável”. Tais desenvolvimentos poderiam fazer de qualquer ativo tokenizado um meio potencial de troca. No entanto, atualmente, a maioria dos tokens não preenche algumas propriedades importantes do dinheiro: estabilidade e, até certo ponto, também fungibilidade. Além disso, a usabilidade e a escalabilidade são também barreiras à entrada para uma potencial adoção em massa.

Estabilidade: Bitcoin e protocolos Blockchain similares simplesmente regulam e limitam a quantidade de tokens cunhados ao longo do tempo. Os seus protocolos não fornecem um algoritmo económico sofisticado que garanta a estabilidade dos preços; a sua taxa de câmbio é determinada pela oferta e procura nos mercados e é frequentemente muito volátil. Embora as moedas Fiat da maioria das economias modernas também tenham taxas de câmbio flutuantes que são determinadas nos mercados cambiais, as instituições nacionais podem realizar intervenções cambiais via mercados cambiais ou outra manipulação da moeda. Em tal processo de intervenção, governos ou bancos centrais compram e vendem moeda em troca de sua própria moeda para manipular o preço de mercado. Eles fazem isso para evitar a excessiva volatilidade a curto prazo, o que torna as ações económicas difíceis de prever e planear. A volatilidade de curto prazo também tende a minar a confiança do mercado, gerando custos extras e reduzindo os lucros das empresas, forçando os investidores a fazer investimentos em ativos financeiros estrangeiros para gerir o risco cambial. Com o surgimento de opções de hedging, tokens estáveis, e atomic swaps em ascensão, a volatilidade dos preços pode vir a tornar-se um tema pouco relevante no futuro. Mas no entretanto, não está claro se, como e quando essas soluções ganharão tração.

Privacidade: atualmente, a maioria dos tokens não contemplam a chamada “privacy-by-design”, ou seja, os esforços empreendidos no design de um sistema para proteger a privacidade desde a raiz a todas as etapas possíveis. Isto torna-os não-fungíveis e, portanto, não utilizáveis como meio de troca. Para que um token possa servir como meio de troca, ele precisa ser totalmente fungível. Se você puder manchar endereços, como no caso do bitcoin, o token não servirá como meio de troca a longo prazo. Embora os endereços bitcoin sejam pseudónimos, uma simples análise em cadeia da ledger pode ligar o fluxo de dados de um determinado endereço a outros pontos de dados fora da Blockchain, e identificar quem está por trás de um endereço bitcoin. Embora isso exija tempo e esforço, e acesso a outros pontos de dados, não é inviável. A rastreabilidade potencial destrói a fungibilidade de um token.

Escalabilidade: as atuais infraestruturas de liquidação das redes Blockchain públicas são seguras, mas não muito escaláveis. Soluções alternativas de ledgers distribuídas têm melhor escalabilidade, mas tendem a ser mais centralizadas e, por isso, menos seguras. Isto deve-se ao “trilema da escalabilidade”, o trade-off entre segurança, escalabilidade e descentralização. Embora a escalabilidade ainda seja um grande problema, muitas soluções já estão no horizonte.

Usabilidade: a usabilidade da carteira tem também ainda um longo caminho a percorrer. A maioria das carteiras atuais suporta apenas uma mão cheia de tokens, e algumas apenas um. Isto significa que muitas vezes é necessário ter uma aplicação de carteira separada para cada token, ou tipo de tokens. Além disso, a gestão de chaves é um pesadelo: se se perder a chave privada, perde-se para sempre o acesso aos fundos. Se esse problema não for resolvido, as carteiras hospedadas sob a custódia de terceiros de confiança, tais como as exchanges online, tornar-se-ão o mainstream. Isto, no entanto, prejudicaria os esforços de gestão autónoma de ativos no sentido do dinheiro eletrónico P2P, tal como previsto originalmente pela Satoshi Nakamoto.

[1] Este capítulo foi baseado em textos que foram publicados antes, originalmente em: Voshmgir, Shermin: “Token Economy — The Future of Currencies?”, Medium blog, Jan 31, 2018: https://medium.com/crypto3conomics/token-economy-the-future-of-currencies-d26487fd3945. Variações deste texto têm sido publicadas na seguinte publicação: https://www.creative.nrw.de/fileadmin/user_upload/Pdf/180423_HIDDENVALUES_148x210_DIGITAL.pdf
https://www.derstandard.at/story/2000081901719/warum-bitcoin-keine-waehrung-ist
Sinner, Martin;  Harlinghausen, Curt Simon;  Voshmgir, Shermin; Solmecke,Christian;  Smith, Monika: “ Business Purpose Design Business Purpose Design”, 2018 Santiago Berlin GmbH

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Money

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial

Os tokens criptográficos representam uma nova classe de ativos heterogéneos que podem cumprir uma gama diversificada de funções económicas. O seu processo de emissão e liquidação sem atritos poderia potencialmente converter muitos ativos ou direitos de acesso do mundo real em “fundos bancáveis”. A tokenização de atividades económicas, de ativos reais a ativos digitais e todos os tipos de direitos de acesso, poderia impactar o papel do dinheiro do banco central enquanto monopolista geográfico fornecedor de um meio de troca, ao passo que a adoção em massa da Web3 se manifesta e os efeitos de rede necessários entram em ação. A velocidade a que estes tokens têm vindo a ser emitidos é um indicador de que um novo sistema económico tokenizado está a surgir. Tal tokenização da economia real poderia levar gradualmente à fusão do sistema monetário, com o sistema financeiro e a economia real.

Uma gama de aplicações financeiras descentralizadas (DeFi) de fácil utilização tem vindo a emergir para além das simples redes de pagamentos que facilitam a emissão sem atritos e P2P de ativos, negociação, empréstimos e hedging. O termo “DeFi” engloba qualquer aplicação financeira descentralizada e não-permissionada que se baseia em livros-razão distribuídos, incluindo sistemas de pagamento que preservam a privacidade (tokens de privacidade), sistemas de pagamento que preservam a estabilidade (tokens estáveis), trocas P2P (trocas de tokens), angariação de fundos P2P (vendas de tokens) e crédito e empréstimos P2P (empréstimos descentralizados), seguros P2P e uma lista crescente de derivados P2P. Essas aplicações DeFi baseadas na Web3 poderiam, potencialmente, abrir serviços financeiros tradicionais ao público em geral, mitigando as atuais ineficiências dos mercados financeiros.

O sistema financeiro atual, mesmo que na sua forma eletrónica, requer uma gama de serviços intermediários para (i) mitigar o risco de contraparte, (ii) criação de mercado, e (iii) assegurar que os fundos não sejam roubados. Isto é um resultado da natureza centrada no servidor da Internet atual. Numa economia tokenizada, no entanto, as ledgers distribuídas e as soluções de identidade centradas no utilizador poderiam aumentar a transparência do ecossistema, a responsabilidade e a eficiência do mercado:* Devido à natureza pública das ledgers distribuídas, as aplicações DeFi são desenhadas para serem acessíveis globalmente por qualquer pessoa ao redor do mundo com uma conexão à Internet e uma carteira Web3. Uma vez que o contrato inteligente é implementado, as aplicações DeFi autoexecutam-se com pouca intervenção institucional exceto para atualizações de código, correções de bugs e resolução de disputas.

* Se os utilizadores optarem por soluções de carteira “não-custodial”, eles permanecem na posse das suas chaves privadas e no controlo total dos seus fundos, potencialmente desintermediando muitos serviços financeiros que atualmente prestam serviços para mitigar o risco de contraparte, agir como criadores de mercado, ou assegurar que os fundos não sejam roubados.

* Qualquer código de contrato inteligente pode ser auditado por qualquer pessoa e está sujeito à correção coletiva de lacunas ou falhas, sendo a base para a rápida evolução do ecossistema DeFi.

* Todas as transações de tokens são verificáveis publicamente, reduzindo o atrito do mercado e aumentando a interoperabilidade dos serviços financeiros. Como resultado dessa interoperabilidade, as aplicações DeFi podem ser construídas de forma modular, e é por isso que muitos se referem a elas como “legos do dinheiro”. Na prática, pode-se construir aplicações DeFi a partir de outras já existentes.

 A combinação de várias soluções DeFi, tais como “tokens estáveis”, “exchanges descentralizadas” e “empréstimos descentralizados”, pode criar produtos completamente novos à disposição dos investidores de retalho e do público em geral. Qualquer pessoa privada poderia, em tal configuração, tokenizar os seus ativos reais e usá-los como garantia colateral para soluções de empréstimo P2P sem burocracia, usando uma combinação de simples aplicações DeFi. Esses novos serviços poderiam, a longo prazo, alterar a dinâmica do nosso sistema económico e contribuir para a fusão da economia real e do sistema financeiro, tornando a sua distinção cada vez menos possível.

Apesar de tais “legos do dinheiro” estarem a emergir rapidamente, eles ainda são incipientes e frequentemente propensos a explorações e ataques como resultado de bugs (erros de programação não intencionais) e hacks maliciosos. A lógica de governança/negócio dos contratos inteligentes subjacentes precisa de auditoria intensiva e correção de bugs, especialmente à luz de uma rede crescente e complexa de aplicações DeFi interoperáveis. Além disso, a maioria das aplicações DeFi de hoje são construídas fundamentalmente para programadores, não para utilizadores. A sua atual falta de usabilidade prejudica os esforços de descentralização. No entanto, à medida que a experiência do utilizador for melhorando, e que as identidades centradas no utilizador se tornem mais comuns, quaisquer fundos “não-bancáveis” poderão ser geridos por uma infraestrutura pública e convertidos num produto financeiro que pode facilmente ser usado como garantia ou negociado com uma simples carteira móvel onde o utilizador está em pleno controlo de todos os seus ativos e todos os seus dados.

Muitos economistas continuam céticos de que os tokens criptográficos podem substituir permanentemente as moedas convencionais uma vez que: (i) existem fortes externalidades de rede que favorecem as moedas convencionais existentes; (ii) a falta de regras sofisticadas de fornecimento de tokens que levem à estabilidade socialmente desejável e à liquidez das economias tokenizadas. Além disso, (iii) de uma perspetiva económica clássica, parece impossível pré-especificar regras de “lender of last resort” socialmente ótimas num contrato inteligente. “Lender of last resort” refere-se a uma instituição que age como rede de segurança, normalmente apoiada pelos bancos centrais, para reduzir o risco de falta de liquidez dos sistemas financeiros e consequente pânico financeiro e de corridas aos bancos. Representa liquidez garantida pelo governo para as instituições financeiras. A falta desse tipo de financiador de último recurso torna os sistemas financeiros suscetíveis a crises financeiras e pânico sistémico.

Eu gostaria de argumentar que ainda estamos nos estágios iniciais de uma economia tokenizada. Estou confiante que os métodos e práticas económicas encontrarão o seu caminho no que toca a contratos inteligentes e regras de governança dos futuros sistemas tokenizados. Já podemos ver isso a acontecer nos casos de tokens algorítmicos estáveis. Além disso, muitos bancos centrais estão atualmente a estudar ou já começaram a fazer tokenização de moedas de bancos centrais, as chamadas CBDC (Moedas Digitais de Bancos Centrais) e torná-las compatíveis com ledgers distribuídas. Novos quadros legais serão necessários à medida que estas novas estruturas passarem de uma fase inicial de inovação para uma fase de infraestrutura mais madura.

Um importante fator decisivo será o surgimento da capacidade multi-token das carteiras e melhores soluções de recuperação de chaves. Outro factor será a superação do desafio da troca de tokens através da ineficiência das Exchanges centralizadas. À medida que o swap de tokens P2P amadureça e seja adotado pelos softwares de carteira, qualquer pessoa será capaz de trocar qualquer token P2P, carteira a carteira, sem ter de recorrer a nenhum intermediário. Em tal cenário futuro, alimentado por aplicações de IA (inteligência artificial) e de DeFi (finanças descentralizadas), os Atomic Swaps poderiam potencialmente introduzir uma economia de troca tokenizada alimentada por plataformas de negociação globais, sem o problema da “coincidência de vontades” que enfrentamos hoje.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

A estabilidade de valor é uma das funções mais importantes do dinheiro para que possa cumprir o seu objetivo como unidade de conta. Os tokens estáveis são concebidos para representar uma reserva de valor, meio de troca e unidade de conta, tendo um valor estável contra outra moeda ou mercadoria, e podem resolver um grande ponto de estrangulamento quanto à adoção em massa de tokens enquanto meio de troca.

Aviso: Alguns dos exemplos mencionados abaixo, tal como “Tether” e “DAI“, estão sujeitos a atualizações frequentes ou eventos atuais. Certos detalhes mencionados no capítulo seguinte podem, portanto, estar já desatualizados no momento da leitura deste livro. O conteúdo deste capítulo está estruturado de forma a pintar o grande quadro das complexidades da conceção de tokens estáveis, independentemente de mudanças futuras.

A estabilidade de valor a curto prazo é uma das funções mais importantes do dinheiro para que possa servir como uma unidade de conta. A estabilidade é um critério fundamental para um planeamento económico significativo para todos os atores de uma economia. Para que um token sirva como meio de pagamento, reserva de valor ou unidade de conta, o token precisa de ter um valor relativamente estável, para que o preço a pagar por bens e serviços possa ser planeado de forma fiável. Caso contrário, é apenas um objeto de especulação. Embora o protocolo Bitcoin tenha introduzido um inovador algoritmo de consenso, ele tem uma política monetária rudimentar que simplesmente regula e limita a quantidade de tokens cunhados ao longo do tempo. O protocolo não fornece um algoritmo económico sofisticado que regule a estabilidade de preços. Como resultado, os tokens do protocolo Bitcoin e similares estão sujeitos à volatilidade dos preços, o que os torna um objeto de especulação e não um meio de pagamento do dia-a-dia. Do ponto de vista da política monetária, o bitcoin não está à altura da sua própria proposta de valor apresentada no White Paper, uma vez que não pode servir como dinheiro eletrónico, razão pela qual é referido por muitos como “ouro eletrónico”.

Assim como o desenvolvimento de um algoritmo de consenso seguro exigia décadas de pesquisa e desenvolvimento, seria necessário um rigor académico equivalente para desenvolver uma “política monetária” resiliente nos protocolos P2P de dinheiro eletrónico. O preço do token precisa também de ser estável e resiliente, portanto resistente a ataques. Contudo, não há necessidade de reinventar a roda. Os governos têm utilizado modelos macroeconómicos para estabilizar as moedas nacionais com medidas como a intervenção monetária. Há muito que se pode aprender com isto, tanto com aquilo que é feito como com aquilo que não é feito. No entanto, a história tem mostrado que proteger a estabilidade da moeda contra ataques externos não é fácil de se conseguir. Em 1992, por exemplo, George Soros invadiu o mecanismo de estabilidade do Banco de Inglaterra, manipulando com sucesso o preço cambial da libra britânica, num evento que agora é chamado de “Quarta-feira Negra” o que acabou por custar ao Reino Unido mais de três biliões de libras à época.

Tokens de protocolo de ponta são atualmente impraticáveis para pagamentos diários (pelo menos em países com taxas de inflação estáveis) e apenas atraentes para especuladores ou investidores de longa data. Os valores dos tokens são voláteis por várias razões: (i) uma política monetária estática como resultado de uma oferta de token que não se ajusta aos níveis de preços, (ii) a mudança da perceção pública sobre o valor do token, (iii) o facto de que eles representam ativos num mercado emergente que a maioria das pessoas não entende, e potencialmente também (iv) a reação do mercado à incerteza regulatória. Num meio estável de troca, nenhuma das partes de um contrato inteligente pode confiar no preço denominado de um determinado token. Esta falta de estabilidade de preços levou ao aparecimento de tokens estáveis ao longo dos últimos anos.

Os tokens estáveis estão a emergir como um elemento indispensável para uma economia tokenizada. Empresas e indivíduos provavelmente não aceitarão tokens como um método de pagamento se seu valor puder cair num curto espaço de tempo. Salários, investimentos e despesas domésticas, tais como aluguer, pagamentos de serviços públicos e mercearias não podem ser denominados de forma confiável ou planeados com um meio de troca instável. Sem mecanismos de estabilidade, contratos inteligentes e aplicações descentralizadas continuarão a ser um fenómeno marginal, pois representariam um alto risco para ambas as partes de um contrato inteligente, o comprador e o vendedor. Ao longo dos anos, várias tentativas têm sido feitas para alcançar uma estabilidade tokenizada: (i) tokens estáveis colateralizados por Fiat ou commodities, (ii) tokens estáveis cripto-colateralizados, e (iii) tokens estáveis algorítmicos, como os “seigniorage shares”. Ultimamente (iv) os bancos centrais começaram a analisar a tokenização das suas moedas, uma vez que estas já vêm com mecanismos de estabilidade de preços incorporados.

 

Token Estável Colateralizado a Ativos

Uma maneira simples de conseguir um token estável é indexá-lo a ativos off-chain que tenham preços estáveis ou relativamente estáveis, como moeda Fiat ou uma commodity como ouro ou diamantes. O Tether e o TrueUSD” são tokens indexados ao dólar americano. O Digix Gold” é um exemplo de um token que é suportado por ouro. Alternativamente, um cabaz de commodities ou moedas “Fiat” pode ser usado como indexante do token. Embora os tokens estáveis garantidos por ativos sejam relativamente fáceis de conseguir, eles têm um problema de centralização. Esta é também a razão pela qual alguns se referem a eles como tokens estáveis “centralizados”. Uma única empresa gere os ativos que garantem a cobertura dos tokens, geralmente numa conta bancária ou cofre seguro. A confiança é terceirizada para uma única entidade, que garante que a quantidade de tokens emitidos corresponde à quantidade mantida num cofre seguro, sujeitando o sistema ao risco de contraparte. Isso pode mudar à medida que os oráculos de hardware e software forem sendo programados para alimentar os contratos de tokens com dados de dispositivos IoT, como câmaras de vídeo monitorizando os cofres. As soluções atuais, no entanto, dependem da confiança num fornecedor de serviços centralizado e num punhado de auditores para garantir que o respaldo dos ativos não seja adulterado. Além disso, os custos e processos são muitas vezes opacos e podem envolver taxas e atrasos mais altos.

Tether (USDT) é um dos tokens estáveis mais antigos e populares. Tem uma paridade um-para-um em relação ao USD, o que significa que, por cada USDT em circulação, é alegadamente adicionado um USD a uma conta poupança gerida centralmente como garantia. Supostamente, existe uma conta bancária que detém mais de 60 mil milhões de USD, o que representa a valorização atual do USDT. No entanto, a Tether é gerida por uma empresa privada e até à data, ainda não viu um processo de auditoria completo. Algumas pessoas duvidam que a Tether esteja totalmente colateralizada, e as autoridades dos EUA estão a investigar o caso. Eles mudaram os seus termos, admitindo que algumas das suas reservas podem ser empréstimos a outras entidades, por exemplo, Exchanges de tokens como a Bitfinex. Além disso, os seus consultores gerais admitiram que apenas 74 por cento do USDT é suportado por caixa e equivalentes de caixa. Isto pode ser crítico, uma vez que o USDT é um dos principais tokens trocados. Uma quantidade significativa de BTC resulta de Tether. Como resultado, muitos estão preocupados que, se as alegações forem verdadeiras, os falsos Tethers possam ser usados para comprar BTC, aumentando o preço de mercado e resultando em manipulação de mercado. Se houver sérias dúvidas sobre o suporte do Tether, o sistema de preços pode entrar em colapso, e se isso acontecer, pode afetar também o BTC.

TrueUSD (TUSD) é um token estável semelhante ao Tether, mas parece ser muito mais confiável. Até agora, eles têm publicado regularmente auditorias independentes para verificar as alegações sobre os fundos que possuem.

Circle (USDC) é um token ERC-20 que permite a transferência bancária de USD em troca de tokens USDC. Isto serve como uma rampa de entrada e saída entre os ecossistemas do USD e da Ethereum.

A Token Digix Gold (DGX) é um token estável indexado ao ouro. Está em operação desde 2018. O ouro é guardado num cofre administrado por uma empresa custodiante em Singapura. Os detentores de tokens DGX pagam uma taxa de gestão para cobrir os custos de armazenamento seguro do ouro. Ao contrário do Tether, o DGX está sujeito a auditores independentes regulares e parece ser mais confiável. Neste processo de auditoria, os depositários e auditores carimbam os relatórios na ledger da Ethereum para fornecer provas publicamente verificáveis de que o ouro está realmente onde deveria estar. Primeiro, os scans da documentação administrativa são carregados no IPFS, uma rede descentralizada de armazenamento de ficheiros, e os hashes desses scans são registados na rede Ethereum, criando uma trilha de auditoria na cadeia. No seu White Paper, Digix descreve um protocolo de prova de proveniência para a verificação de ativos do mundo real. O mesmo protocolo poderia ser aplicado a outros bens, tais como arte, prata, platina, diamantes, bens imobiliários, etc. O mecanismo de governança por detrás do Digix está organizado como uma DAO (Organização Autónoma Descentralizada). Esta DAO vem com um token separado, o token DigixDAO (DGD), que concede direitos de voto para a governança do Digix. As questões de gestão em torno da governança do token DGX são, portanto, descentralizadas e realizadas pela DigixDAO.

Globcoin é uma iniciativa de token estável apoiada pelas moedas das quinze maiores economias, para além do ouro.

A Reserva AAA é apoiada por um cabaz de moedas nacionais, investimentos de crédito com rating AAA e títulos garantidos pelo governo.

A DIEM (anteriormente conhecida por Libra) está a ser desenvolvida como um token estável para “simplificar o mais possível as transações financeiras para todas as pessoas do mundo, onde quer que vivam, tenham ou não uma conta bancária”. De acordo com o white paper, o plano é que a Diem seja lastreada por ativos financeiros como cabazes de moedas e títulos do tesouro do governo dos EUA para evitar a volatilidade.

 

Tokens Estáveis Cripto-Colaterizados

Uma forma de mitigar o problema da centralização é apoiar os tokens estáveis com um token Blockchain nativo, como BTC ou ETH, razão pela qual estes tokens estáveis são por vezes também referidos como “tokens estáveis descentralizados”. Em tal configuração, o token estável é colateralizado com BTC ou ETH. O token colateral (BTC ou ETH) é gerido inteiramente em cadeia por um contrato inteligente, em vez de um terceiro. A natureza pública e verificável dos tokens nativos da Blockchain torna o sistema mais confiável. O risco de subcolateralização pode ser mitigado. BitUSD introduziu este modelo em 2013, e inspirou muitos outros projetos, tais como “MakerDAO” (DAI), Sweetbridge, “Augmint” e “Synthetix” (antiga Havven), para usar variações deste mecanismo. Outras variações de tokens estáveis cripto-colateralizados são: “Reserve“, “StatiCoin“, Alchemint, “Boreal“, “Celo“, e “Unum“.

O DAI é um token estável operado pela MakerDAO. O preço é fixado em 1:1 em relação ao USD. O DAI é apoiado pelo ETH (e recentemente também por alguns outros tokens) que podem ser garantidos num contrato inteligente. É considerado o projeto de token estável cripto-colateralizado mais promissor. Os portadores de tokens ETH podem depositar os seus tokens num contrato inteligente para gerar tokens DAI. O contrato inteligente bloqueia o ETH depositado até que os tokens DAI sejam pagos de volta. O token colateral (ETH) é automaticamente libertado pelo contrato inteligente quando todas as dívidas (tokens DAI) são reembolsadas. Colateralizar ETH contra DAI resulta numa posição de dívida para os detentores de tokens DAI, razão pela qual o contrato inteligente é referido como uma “posição de dívida colateralizada” (CDP – Colaterized Debt Position).

Os tokens estáveis cripto-colateralizados são propensos à volatilidade do token subjacente utilizado como garantia. Esta volatilidade torna mais difícil a manutenção da paridade 1:1 do DAI em relação ao USD. É por isso que o DAI usa um rácio colateral/dívida de 150 por cento. Outros tokens estáveis podem usar rácios ainda mais altos. Isto significa que se o preço do ETH cair, e quando o CDP individual cair abaixo de 150, o contrato inteligente irá autoliquidar o token colateral. Os tokens DAI são bloqueados pelo contrato inteligente se o valor do ETH cair abaixo deste limite, e o contrato inteligente vende o ETH para compensar o risco de não-pagamento. Um crash significativo do preço do token colateral abaixo do PEG[1] (Price Earnings to Growth) pode fazer com que os detentores do token DAI percam capital. Se o valor do ativo colateral (ETH) cair muito rapidamente, os tokens estáveis (DAI) emitidos podem ficar sem garantia. O DAI dispõe de mecanismos mais complexos para proteger contra as flutuações de preços. Detalhes deste processo estão além do escopo deste livro, mas podem ser estudados lendo o white paper respetivo e a documentação no website do projeto.

Muitos economistas afirmam que se a volatilidade dos preços do ativo subjacente for muito alta, as soluções cripto-colateralizadas são suscetíveis a eventos de cisne negro. O DAI pode acabar não colateralizado se uma falha for suficientemente rápida para que o sistema seja incapaz de fechar CDPs suficientes, e comprar de volta o seu DAI, antes que a colateralização geral do sistema caia abaixo dos 100%. Outro desafio é a falta de oráculos com alimentação de preços confiáveis sobre os preços dos ativos nas Exchanges. Atualmente, uma manta de retalhos de soluções centralizadas é usada, mas elas são propensas à manipulação e ao ataque.

Inicialmente, o DAI suportava apenas um tipo de garantia (ETH), mas desde 2019, também suporta qualquer número de ativos como um cabaz de garantias, para mitigar os riscos de volatilidade associados a um único ativo. A lista atual de garantias aceites é: Augur (REP), Basic Attention Token (BAT), DigixDAO (DGD), Ether (ETH), Golem (GNT), OmiseGo (OMG), e 0x (ZRX). O projeto também lançou o Dai Savings Rate (DSR), um serviço adicional que possibilita amealhar ganhos simplesmente por meio da posse do Dai.

 

Moeda Digital de Banco Central

Enquanto a comunidade cripto tem vindo a experimentar várias soluções de tokens estáveis por iniciativa privada, os bancos centrais começaram também a analisar a tokenização das suas próprias moedas, as quais vêm já com mecanismos de estabilidade embutidos. Esse token de banco central, chamado de Moeda Digital do Banco Central (CBDC – Center Bank Digital Currency), atua como uma representação tokenizada da moeda Fiat de um país. Os mecanismos de estabilidade são fornecidos por atores estabelecidos como bancos centrais, em colaboração com a política fiscal e monetária de um governo nacional. Os tokens fariam parte da base monetária, juntamente com outras formas de dinheiro: dinheiro e outros equivalentes (M0 + M1), depósitos de curto prazo (M2), e depósitos de longo prazo (M3). As CBDC poderiam ser utilizadas para a liquidação de contratos inteligentes, uma vez que o seu equivalente em tokens pode ser gerido por uma ledger distribuída subjacente. 

Alguns economistas acreditam que as CBDC competem com depósitos bancários comerciais e reduzem o custo de gestão do sistema de pagamentos local e internacional. Atualmente, o custo de gerir a oferta monetária de um país é elevado, tal como o são as transações transfronteiriças. A longo prazo, as CBDC poderiam eliminar a necessidade de contas bancárias clássicas, substituindo-as por carteiras criptográficas móveis de fácil download, e potencialmente aumentar a inclusão daqueles que ao redor do mundo não têm acesso a bancos. Contudo, essa desintermediação dos bancos comerciais e dos pagamentos transfronteiriços também poderia desestabilizar os sistemas de crédito e os mercados cambiais, pelo menos a curto prazo. As CBDC poderiam, além disso, desafiar a prática de reserva fracionária[2] dos bancos e eliminar a necessidade de garantias de depósitos. A emissão de dinheiro do banco central diretamente ao público poderia também proporcionar um novo canal para a execução da política monetária. Isso permitiria o controlo direto da oferta de moeda e poderia complementar ou substituir ferramentas indiretas, como taxas de juro ou flexibilização quantitativa.[3] Alguns economistas pensam mesmo que a CBDC poderia ser um método para alcançar um sistema bancário de reserva total.[4]

De acordo com um estudo realizado pelo BIS (Bank of International Settlement), muitos governos estão a pensar em tokenizar a sua moeda ou já começaram a fazê-lo em vários graus (cerca de 80%), como o Banco de Inglaterra, Banco Central da Suécia, Banco Central do Uruguai, Ilhas Marshall, China, Irão, Suíça e o Banco Central Europeu. É, portanto, bastante provável que dentro dos próximos três a cinco anos, muitas moedas emitidas pelo banco central tenham um equivalente tokenizado. A “CBDC Sintética” (sCBDC) é um conceito alternativo pelo qual as instituições privadas emitem tokens totalmente garantidos pelas reservas do banco central. A questão é se as CBDC e as sCBDC podem tornar obsoletos os esforços de emissão de tokens estáveis privados, ou se eles tornar-se-ão apenas alguns dos muitos outros tokens nesta nova economia token que temos pela frente.

 

Token Algorítmico Estável

Os tokens estáveis que estão vinculados a ativos que utilizam serviços financeiros legados podem parecer simples e óbvios à primeira vista, mas também podem ser vistos como algo contrário ao espírito da tecnologia descentralizada subjacente. Isso é semelhante a como o Yahoo e muitos outros mecanismos de busca do início dos anos 90 tentaram disponibilizar conteúdo da Internet catalogando sites, assim como se catalogavam livros ou revistas na biblioteca. Embora esses mecanismos de busca fossem populares e intuitivos nos primeiros tempos da Internet, eles eram pouco ou nada escaláveis, nem refletiam o potencial da tecnologia subjacente. Eventualmente, a pesquisa algorítmica, tal como oferecida pelo Google e outras empresas, substituiu o conteúdo catalogado manualmente. Da mesma forma, os tokens estáveis apoiados por ativos podem parecer tentadores no início, mas algumas soluções algorítmicas interessantes estão em ascensão e podem fazer mais jus à natureza dos contratos inteligentes.

Seigniorage Shares[5] é um conceito para um token algorítmico estável que foi proposto pela primeira vez por Robert Sams em 2014. No seu white paper, ele delineou como se pode usar contratos inteligentes para cumprir o papel de um banco central para formalizar mecanismos de política monetária para que o token negoceie a um preço estável. Os mecanismos elásticos de oferta podem ser concebidos para estimular a expansão ou contração da oferta do token, semelhante à forma como os bancos centrais controlam a oferta de moedas Fiat. Se a procura por tokens estáveis aumenta ou diminui, o algoritmo ajusta-se automaticamente para manter o preço estável. Se o preço for muito alto, o mecanismo irá aumentar a oferta. Se o preço for muito baixo, os tokens precisam ser “congelados”, de uma forma ou de outra. A questão de como aumentar e diminuir a oferta de tokens de uma forma resistente ao ataque e resiliente não foi resolvida de forma conclusiva. Dependendo do projeto, diferentes métodos algorítmicos são usados para expansão e contração. Exemplos de tokens algorítmicos estáveis são: Ampleforth (anteriormente Fragments), Carbon, Kowala, BitBay Official, SteemDollar, Corion, Topl, Stable, StableUnit, e TerraMoney.

Por exemplo, se um token estável com uma paridade 1:1 ao euro for negociado acima de 1 euro, isso indica que a oferta é superior à procura. A oferta de tokens tem de ser aumentada para estabilizar o preço de volta a 1 EUR. O contrato inteligente é programado para cunhar novos tokens (seigniorage shares) e vendê-los no mercado aberto, aumentando assim a oferta até que o preço volte a um nível estável. Se o valor for negociado abaixo de 1 EUR, a oferta de tokens deve ser contraída. O contrato inteligente não pode simplesmente destruir os tokens circulantes que pertencem a alguém. O contrato inteligente, porém, pode ser concebido para comprar tokens no mercado aberto para reduzir a oferta circulante, e aumentar o preço. Enquanto que a oferta de tokens pode ser facilmente expandida através da emissão de novos tokens, a contração da oferta de tokens requer mecanismos mais sofisticados. Por que razão é que os portadores de tokens devem concordar em vender tokens, e como podem eles ser significativamente incentivados a fazer isso? Se o contrato inteligente não tiver suficientes tokens cunhados recentemente, ele poderia emitir títulos em troca de um token estável em proporção aos tokens que precisam ser destruídos. Estes títulos são vendidos com desconto e podem ser pagos numa data futura, sendo os portadores dos títulos os primeiros a serem reembolsados. O desconto serve como um incentivo para que os detentores removam os tokens estáveis de circulação. 

Embora a ideia de utilizar contratos inteligentes para substituir certas funções de um banco central seja intrigante, alguns mecanismos baseiam-se em pressupostos económicos parcialmente não comprovados e políticas monetárias não testadas, especialmente em torno do design de incentivos para os ciclos de contração. Em alguns casos, a estabilização é ainda parcialmente mantida através de mecanismos centralizados. Além disso, o desafio dos oráculos descentralizados de preços[6] tem de ser resolvido. Muitos economistas acreditam, portanto, que os tokens algorítmicos estáveis podem não funcionar, pois este método pressupõe um crescimento ilimitado do sistema. Cada ciclo de contração inicia o potencial para um futuro aumento na oferta total do token estável, o que poderia levar a uma espiral de morte no preço dos títulos, aumentar o tempo de pagamento e diminuir as probabilidades de cada título ser pago. Isto poderia levar a um ciclo de feedback recorrente, que poderia minar o objetivo de contração da oferta em grande escala, a menos que sejam tomadas outras medidas para evitar tal ciclo. Como solução para este problema, alguns projetos permitem aos portadores de tokens congelar temporariamente os tokens; outros projetos emitem títulos que expiram após um certo tempo.

 

Desafios e Perspetivas

Embora muitos projetos de tokens tentem alcançar a estabilidade dos mesmos, ainda não foram estabelecidas boas práticas claras (além de potenciais CBDC). O surgimento de tokens estáveis é um fenómeno relativamente novo, e muitas propostas delineadas nos white papers ainda não foram implementadas ou são altamente experimentais, especialmente os métodos cripto-colateralizados e algorítmicos. Apenas um punhado de projetos estão vivos, a maioria dos quais sofre com a volatilidade dos preços. Para aqueles projetos que ainda estão na fase de white paper, é difícil dizer se e quando eles serão bem-sucedidos ou totalmente operacionais. A adoção atual de tokens estáveis mostra que Tether e tokens similares Fiat-colateralizados ou commodity-colaterizados estão na liderança em termos de capitalização de mercado. O DAI (MakerDAO) e outros projetos cripto-colateralizados parecem ser as alternativas mais promissoras. No entanto, eles ainda têm muitas falhas, potencialmente maiores em larga escala, tal como enfrentar a robustez dos seus mecanismos no caso de um evento de cisne negro.

Todos os tokens estáveis, mesmo os mais descentralizados, estão de alguma forma vinculados a outro ativo subjacente na proporção de 1:1. Dependendo da dinâmica do mercado, o índice de pegging pode ser volátil. Na altura em que as economias se passem a desenvolver em torno do token estável, criando certos efeitos de rede, o pegging pode começar a ter menos importância. Este poderia ser o caso se as empresas estiverem dispostas a aceitar um token estável, e o qual também ser aceite por outras empresas. Manter um peg perfeito torna-se menos importante à medida que o token se torna um meio de troca amplamente aceite.

Além disso, qualquer implementação de token estável precisa de resolver o problema do oráculo. Se o token estiver vinculado ao valor de um ativo, o sistema precisa de uma forma descentralizada para receber dados sobre a taxa de câmbio entre o token estável e o ativo ao qual ele está vinculado. No entanto, nenhuma das soluções existentes é totalmente descentralizada ou ainda totalmente confiável.

Os tokens estáveis enfrentam sempre “a trindade impossível” com que as moedas convencionais são também confrontadas, o trade-off entre (i) a política monetária autónoma, (ii) a estabilidade cambial, e (iii) a mobilidade do capital. Como a mobilidade do capital é um dado adquirido no contexto de um token criptográfico, e a estabilidade da taxa de câmbio precisa ser alcançada, é preciso abandonar a política monetária autónoma (ver Tether). Os economistas argumentam que sistemas tokenizados com regras mais autónomas de oferta de tokens nunca terão taxas de câmbio estáveis em relação às moedas convencionais. Pode-se, porém, colocar este veredicto em perspetiva, se se considerar um token criptográfico não como um concorrente a uma moeda convencional, mas sim como um novo ativo alternativo. Ninguém teria a ideia de que ativos convencionais como as ações em bolsa teriam de ser estáveis em valor, e, no entanto, esta falta de estabilidade não impediu, nem impede, a sua adoção generalizada.

Por último, mas não menos importante, convém ressaltar que os tokens estáveis podem não ser a única solução para a volatilidade dos preços dos tokens. Os seguros ou derivados financeiros podem fornecer alternativas ou pelo menos métodos complementares para mitigar a volatilidade dos preços. Hedging, ou cobertura de risco cambial, é uma estratégia de investimento que pode ser usada para reduzir o risco financeiro, equilibrando as posições no mercado para proteger contra a volatilidade dos preços. Uma combinação de aplicações DeFi poderia ser usada para criar tais derivados P2P e soluções de hedging.

Soluções de tokens estáveis bem-sucedidas poderiam resolver o entrave do uso de tokens como unidade de conta e, consequentemente, como um meio de troca do dia-a-dia. É um grande catalisador para aplicações descentralizadas e uma economia token fluida. No entanto, a estabilidade é apenas um dos muitos desafios para fazer dos tokens um meio de troca para pagamentos do dia-a-dia. Sem privacidade, nenhum token será fungível, e sem escalabilidade e melhor usabilidade da carteira, tanto as empresas como os consumidores não adotarão esta nova tecnologia.

[1] PEG, ou Índice de preço sobre lucro em crescimento, mede a relação entre o índice preço/lucro e o crescimento anual de um ativo, revelando como esse ativo está cotado pelo mercado. Quanto mais baixo o PEG, mais barato está o ativo, considerando uma taxa de crescimento anual.

[2]Um sistema bancário no qual apenas uma fração dos depósitos bancários é apoiada por dinheiro real que está disponível para retirada é referido como banco de reserva fracionário. Enquanto os bancos são obrigados a manter uma certa quantia do dinheiro que os depositantes lhes dão, eles não são obrigados a manter a totalidade da quantia. Eles são obrigados a manter apenas 10% do depósito como “reservas”. Este sistema liberta capital para empréstimos e é usado como uma ferramenta de política económica expansionista.

[3] A flexibilização quantitativa é um mecanismo de intervenção da política monetária em que um banco central compra títulos do mercado para proporcionar aos bancos mais liquidez, incentivar o investimento e aumentar a oferta de moeda com as reservas bancárias recentemente criadas. Este é um método bastante pouco convencional que é utilizado quando as taxas de juro já estão perto de zero por cento.

[4] O Full-reserve Banking é um sistema bancário onde os bancos têm de armazenar o montante total dos fundos de cada depositante em dinheiro, para que possa ser levantado pelo depositante em qualquer momento. Os fundos não seriam emprestados a outra pessoa.

[5] Seigniorage é uma forma de imposto de inflação, devolvendo recursos ao emissor da moeda, e pode ser uma fonte de receita para um governo. Deriva da diferença do custo de produção e distribuição de dinheiro e do valor do mesmo.

[6]Um oráculo é um dado inserido em um contrato inteligente.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

As primeiras redes Blockchain fornecem um elevado nível de transparência, o que torna o histórico do token visível para qualquer pessoa. Isto compromete a privacidade dos detentores de tokens e também torna o token menos fungível. Os sistemas alternativos de tokens têm, por conseguinte, o objetivo de criar protocolos mais preservadores da privacidade.

 

Aviso: A maioria dos exemplos de tokens de privacidade mencionados abaixo está sujeita a frequentes alterações de protocolo. Certos detalhes mencionados no capítulo seguinte podem, portanto, estar desatualizados no momento da leitura deste capítulo. O conteúdo deste capítulo, no entanto, é estruturado de forma a pintar o grande quadro do desenho de tokens de privacidade, independentemente de futuras mudanças de protocolo.

Um token de pagamento só é útil como meio de troca se satisfizer os critérios de fungibilidade. A fungibilidade refere-se ao facto de as unidades individuais de um token serem iguais e poderem ser substituídas umas pelas outras. O nível de fungibilidade está correlacionado com o nível de privacidade/anonimato que um token proporciona. Isto requer tanto “não-individualização” (ofuscando a rastreabilidade com indivíduos identificáveis) quanto a intransparência de outros dados relacionados com fluxos de transações.

Formas análogas de dinheiro, como moedas metálicas ou notas, não dão qualquer informação sobre o histórico da transação, uma vez que não existe uma forma economicamente viável de rastrear uma listagem de anteriores proprietários. O dinheiro em espécie – vulgo numerário – pode, portanto, ser considerado como a forma de dinheiro mais anónima e fungível. No passado, alguns países proporcionaram precedentes legais para a necessidade de fungibilidade numa moeda. A Escócia, por exemplo, determinou a fungibilidade dos tokens de dinheiro emitidos pelo Estado sob a forma de notas e moedas em 1749, afirmando que a história de uma moeda ou nota individual devia ser considerada irrelevante. Tais precedentes, porém, foram desafiados pela crescente digitalização dos nossos sistemas financeiros globais. Embora o dinheiro emitido pelo Estado, na forma de dinheiro em espécie, permita um elevado grau de privacidade e, portanto, também de fungibilidade, o dinheiro em espécie tem vindo a ser menos utilizado para pagamentos nas economias modernas, em alguns casos representando menos de 10% das atividades financeiras de uma economia.[1]

O aumento dos pagamentos por cartão de crédito, os serviços bancários eletrónicos antes da Internet e os serviços de tecnologia financeira baseados na Web2 aumentaram as possibilidades de rastrear os fluxos de dinheiro. Embora os nossos dados pessoais estejam espalhados por bancos e outras instituições em todo o mundo, cada uma dessas instituições possui um conhecimento parcial da nossa pegada financeira digital. Registos eletrónicos reduziram os custos de monitorização de como usamos o nosso dinheiro com simples algoritmos. Além disso, a crescente regulamentação anti-lavagem de dinheiro (AML – Anti Money Laundering) e os esforços das autoridades fiscais forçaram as instituições financeiras de todo o mundo a monitorizar, e às vezes até mesmo revelar, informações sobre as atividades financeiras dos seus clientes. A regulamentação de AML nos Estados Unidos data da Lei do Sigilo Bancário de 1970. O aumento do tráfico internacional de drogas e da lavagem de dinheiro dos governos de todo o mundo levou à criação do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) pelos países da Cúpula do G-7 em 1989, criando uma base regulatória mais global. Após o 11 de setembro de 2001, o GAFI expandiu a sua regulamentação AML para combater o financiamento do terrorismo. Como resultado, muitos países começaram a impor regulamentos Know Your Customer (KYC) que exigem que as instituições financeiras e outros setores regulamentados estabeleçam a identidade dos seus clientes, mantenham registos das respetivas transações e notifiquem as autoridades sobre atividades potencialmente suspeitas por parte dos seus clientes no caso de “transações de limiar” definidas pelos governos. Tais práticas, como resultado de imposições regulamentares, estão gradualmente a corroer a fungibilidade e, consequentemente, a qualidade do dinheiro.

 

 

Privacidade dos Tokens Blockchain

A rede Bitcoin e redes públicas não-permissionadas similares usam criptografia assimétrica para criar identidades online sob forma de endereços Blockchain. Desta forma, um utilizador pode criar múltiplos endereços sem os requisitos KYC, enquanto envia e recebe, com confiança, tokens através de uma rede pública. Estes endereços consistem numa cadeia alfanumérica que não dá qualquer indicação da identidade do utilizador, semelhante às contas bancárias tradicionais suíças, apenas fornecendo pseudonomia. A divulgação pública dos endereços Blockchain de alguém, seja através das redes sociais ou como resultado da atividade de troca de tokens em Exchanges, torna os utilizadores suscetíveis a esforços de desanonimização usando análise de dados. A privacidade dos nós só pode ser garantida enquanto a identidade real do proprietário de uma carteira não puder ser ligada a um determinado endereço de rede. 

A natureza publicamente verificável das redes Blockchain torna as transações rastreáveis. Todas as transações são registadas em texto claro (não criptografado) para a ledger. Os dados das transações são visíveis para qualquer pessoa que utilize um explorador de blocos e podem, portanto, ser ligados a outras transações feitas pelo mesmo titular. Tais dados de transação podem revelar informações sensíveis: o endereço do remetente, o endereço do destinatário, a ligação entre esses dois endereços e a quantidade de tokens enviados. As transações de contratos inteligentes mais complicadas envolvem ainda mais dados, dependendo do caso de uso. Além disso, no processo de transações de transmissão, os nós podem revelar os seus endereços IP. Metadados de transações de tokens podem ser usados para rastrear o endereço IP de um utilizador, às vezes até mesmo quando serviços de anonimização como o Tor ou I2P são usados. Com as possibilidades atuais de análise de dados, essa ligação não exige muito esforço, especialmente por parte das autoridades governamentais. A título de exemplo: “Investigadores do MIT e da Université Catholique de Louvain, na Bélgica, analisaram dados sobre 1,5 milhões de utilizadores de telemóveis num pequeno país europeu durante 15 meses e descobriram que apenas quatro pontos de referência, com resolução espacial e temporal relativamente baixa, eram suficientes para identificar de forma única 95% deles. Em outras palavras, para extrair a informação completa de localização de uma única pessoa a partir de um conjunto de dados ‘anonimizados’ de mais de um milhão de pessoas, tudo o que você precisaria fazer era colocá-lo a algumas centenas de metros de um transmissor de rede móvel, em algum momento ao longo de uma hora, quatro vezes num ano. Alguns posts no Twitter provavelmente forneceriam todas as informações que você precisava, se contivessem informações específicas sobre o paradeiro da pessoa”.[2]

A maioria dos utilizadores atualmente compra tokens em troca de moeda Fiat usando exchanges online que estão cada vez mais sujeitas ao regulamento KYC. Mesmo que não estejam, as moedas “Fiat” que são enviadas para uma Exchange online normalmente requerem interação com o sistema bancário, e estes bancos estão sujeitos aos requisitos de KYC. Qualquer pessoa com acesso à base de dados de uma Exchange pode, portanto, ligar estes endereços pseudónimos a nomes reais. Existe uma evidência crescente de que esses dados são partilhados entre as Exchanges e as agências de aplicação da lei ou empresas de análise em cadeia. Uma simples “análise em cadeia” e correlação com a pegada digital de um utilizador fora da rede Blockchain pode, portanto, permitir a individualização de identidades e perfis de utilizadores. Investigadores individuais, autoridades públicas e serviços forenses privados da Blockchain, como “Chainalysis e “Elliptic, podem conduzir análises em cadeia para detetar padrões gerais de transação, incluindo potenciais atividades de lavagem de dinheiro, fraude e outras possíveis violações de conformidade. Dependendo da proveniência do token, os tokens individuais podem não ser aceites pelos comerciantes devido ao seu histórico de transações manchadas. Isto reduz a fungibilidade de um token.

As redes Blockchain mais recentes têm-se esforçado por melhorar o nível de privacidade das transações de tokens. Tais “tokens de privacidade” usam várias técnicas de ofuscação para tornar o histórico do token menos transparente. O objetivo dos tokens de privacidade é desenhar um protocolo que revele o mínimo de informação necessária e ofusque todas as outras informações. Dependendo do protocolo Blockchain, vários elementos de uma transação podem ser anonimizados em diferentes extensões: (i) anonimato da carteira/endereço, (ii) confidencialidade dos dados da transação tais como valores pagos, (iii) privacidade sobre o estado total da rede.

* Privacidade do utilizador (anonimato total): a identidade do utilizador que envia ou recebe um token é ofuscada de tal forma que as ações do utilizador não podem ser ligadas à sua identidade no mundo real.

* Privacidade dos dados da transação: a obtenção de dados específicos de uma transação de tokens usando ferramentas criptográficas, como o endereço do remetente e do destinatário ou o montante da transação, dificultará a análise da cadeia, uma vez que certos pontos de dados importantes estarão em falta.

* Privacidade do estado da rede: se determinados dados da transação podem ser tornados privados, a ledger revela apenas informações parciais sobre o estado da rede. Diferentes atributos dos estados podem ser tornados privados para diferentes utilizadores. No entanto, há um trade-off entre privacidade individual e a integridade/segurança da rede que precisa ser considerado.

[1] A utilização de numerário para efeitos de transação é apenas um dos motores da procura de notas de banco. O numerário também é utilizado como “reserva de valor”.

[2] Hardesty, Larry: “How hard is it to ‘de-anonymize’ cellphone data?” MIT news: https://news.mit.edu/2013/how-hard-it-de-anonymize-cellphone-data (retrieved March 26, 2020)

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Durante a última década, uma lista crescente de projetos tem vindo a experimentar uma série de métodos, desde a agregação de transações a algoritmos criptográficos alternativos. Este capítulo fornecerá uma visão geral; um mergulho técnico mais profundo sobre toda a gama de ferramentas criptográficas está para além do espectro deste livro e exigiria uma publicação separada.

Serviços de Mistura: os primeiros métodos de transações anónimas de tokens começaram com técnicas de agregação utilizadas por “tumblers” e serviços de mistura. Tais serviços geralmente misturam entradas e saídas de diferentes transações de tokens, agregando-as numa transação coletiva e assim ofuscando as conexões entre o remetente e o destinatário. O “Bitmixer foi um dos primeiros projetos que tentou aumentar a dificuldade de ligar identidades do mundo real a endereços Blockchain. O serviço, no entanto, não estava totalmente descentralizado. O “CoinJoin” substituiu a necessidade de um terceiro de confiança tal como o Bitmixer pela segurança criptográfica, alavancando as provisões de segurança da rede Bitcoin. Nos primeiros anos, no entanto, as transações CoinJoin tinham apenas um punhado de utilizadores, o que tornava o serviço de mistura propenso à análise em cadeia. Além disso, o CoinJoin dependia da coordenação off-chain, onde os utilizadores tinham que encontrar outros utilizadores para executar o CoinJoin com eles. O “TumbleBit utilizava um método modificado, que era ligeiramente melhor, mas também tinha as suas limitações e nunca ganhou adoção generalizada. A maioria dos tokens de privacidade e clientes de Blockchain que preservam a privacidade aos dias de hoje, com exceção do Zcash, usam uma variante de tais serviços de mistura como parte de suas técnicas de ofuscação. Na maioria dos casos, eles usam uma variante do CoinJoin.

Dash foi originalmente lançado como “XCoin”, depois renomeado para “Darkcoin” antes de ser rebatizado como “Dash”. É um fork de software do código fonte Bitcoin que entrou em funcionamento em 2014. É uma rede de Proof-of-Work com diferentes tipos de nós, os “diggers” (mineradores) e os “masternodes“. Os novos blocos são criados pelos mineradores. Os masternodes executam funções de governança e privacidade: “PrivateSend” (privacidade financeira) e “InstantSend” (transações instantâneas). O “PrivateSend” utiliza uma variante dos métodos de “token-mixing” do CoinJoin. No entanto, Dash resolveu a necessidade de coordenação off-chain do CoinJoin, ao incentivar masternodes com tokens de rede para realizar transações de CoinJoin. O “InstantSend” permite transações quase instantâneas onde as entradas são bloqueadas para transações específicas e verificadas por consenso da rede de masternodes. A recompensa do bloco é dividida entre mineradores e masternodes: mineradores (45%), masternodes (45%), governança e o sistema de orçamento, que é criado pelos chamados “superblocos” (10%).

Monero foi originalmente baseado no protocolo “Bytecoin proposto por um programador anónimo sob o pseudónimo de Nicolas van Saberhagen. A rede foi bifurcada por vários programadores (alguns dos quais permaneceram anónimos) em “Bitmonero” devido a questões de protocolo e foi bifurcada para Monero em 2014 devido a desacordos dentro da equipe de programadores sobre o futuro da rede. Monero não é apenas a mais antiga, mas também a mais difundida rede de tokens de privacidade. O protocolo e as estruturas de dados foram modificados várias vezes ao longo dos anos, incluindo a migração para uma estrutura de base de dados diferente que proporciona maior eficiência e flexibilidade. Ao contrário da rede Bitcoin, onde os tokens são enviados para um endereço público, os tokens da rede Monero são enviados para um endereço anónimo recém-criado, destinado a um uso único (endereços furtivos). Uma “chave privada de gastos” é necessária para criar o endereço furtivo e autorizar as transações de tokens. Somente o destinatário da transação pode “descobrir” este endereço recém-criado com sua “chave de visualização secreta”. O processo de descoberta é realizado pela carteira Monero do destinatário, verificando a rede em busca de novos endereços furtivos. Monero utiliza atualmente “Ring Confidential Transactions” (Ring CT), uma variante das assinaturas de anel que substituiu o protocolo original de assinatura de anel. Os tamanhos mínimos das assinaturas de anel foram modificados para que todas as transações fossem “privadas por mandato”. Monero utiliza uma variante da CoinJoin onde os nós não precisam de coordenar fora da cadeia. Os mineradores podem fazer transações em lote assíncronas (e assim misturar) num bloco. Os montantes das transações são ofuscados com o uso de compromissos homomórficos (Pedersen), um tipo específico de “esquemas de compromisso” homomórficos[1] em combinação com “blinding”. A certa altura, a equipe Monero estava também a planear implementar o roteamento de pacotes de preservação de privacidade no protocolo com o projeto “Kovri”, o que teria permitido aos utilizadores esconder seus endereços IP e localizações. 

O Zcash foi lançado em 2016. Ele surgiu a partir do protocolo “Zerocoin” e “Zerocash“, utilizando uma variante das provas de conhecimento zero chamadas “zk-SNARKs” (Zero-Knowledge Succinct Non-Interactive Argument of Knowledge), que foi desenvolvida em 2015 e implementada pela primeira vez no protocolo Zcash. As Zero-Knowledge-Proofs são um algoritmo criptográfico que permite aos nós da rede provar a posse de certos dados sem revelar os próprios dados. Elas podem ser usadas para ofuscar os dados de transação armazenados na ledger (endereço do remetente, endereço do recetor, quantidade transferida), permitindo que os nós verifiquem a validade dos dados de transação criptografados sem o conhecimento dos mesmos. Em tal configuração, o “prover” pode provar ao “verifier” que uma declaração é verdadeira, sem revelar qualquer informação para além da validade da declaração. A rede Zcash oferece “privacidade opcional”, o que significa que os utilizadores podem optar por usar “endereços transparentes” ou “endereços blindados”. Os “endereços transparentes” são semelhantes aos endereços da rede Bitcoin. Os endereços blindados anonimizam os dados de transação. As transações de tokens podem, portanto, ser (i) transparentes-transparentes (semelhante ao Bitcoin); (ii) transparentes-blindadas (transações blindadas que quebram a possibilidade de ligação entre transações), (iii) blindadas-transparentes (transações blindadas que retornam ZECs previamente blindados ao público sem que os ZECs retornados estejam ligados a endereços transparentes anteriores), (iv) blindadas-blindadas (transações privadas onde os endereços e o valor da transação são anónimos); (v) híbridas (blindagem parcial dos endereços de envio e/ou dos endereços de recebimento). No entanto, o envio de transações blindadas é computacionalmente caro, razão pela qual muitas transações Zcash foram enviadas de forma transparente. A equipe Zcash trabalhou numa atualização do protocolo para melhorar o desempenho e a funcionalidade das transações blindadas que não alterassem as métricas. No momento em que este livro foi escrito, a maioria das transações ainda são enviadas de forma transparente.[2]

Mimblewimble é uma proposta de protocolo Blockchain com o objetivo de aumentar a privacidade e a escalabilidade da rede. Foi introduzido em 2016 num documento com o pseudónimo de utilizador “Tom Elvis Jedusor“. Mimblewimble usa “Confidential Transactions” e “Pedersen Commitments” para ofuscar transações que são verificáveis publicamente sem revelar os dados da transação. Os nós apenas têm que verificar a autenticidade de entradas específicas em vez de toda a ledger, removendo a necessidade de armazenar dados de transações passadas na ledger. O histórico da ledger contém os cabeçalhos do bloco, o estado do sistema e as assinaturas de saída das chamadas “saídas fictícias”. Combinado com alguns outros métodos, o resultado é uma ledger mais compacta, o que significa que os nós precisam de menos largura de banda e armazenamento para sincronizar a ledger. Os nós de rede não precisam do histórico completo de transações para verificar se o estado é válido. Similar ao Monero, o protocolo propõe agregação de transações ocultando todos os montantes e saldos das transações e ocultando os endereços do remetente e do destinatário, mas ambos devem coordenar fora da cadeia antes de levar a cabo uma transação. Enquanto que o protocolo Monero usa “transações fictícias” para inchar a ledger, Mimblewimble funde as transações antigas. A proposta Mimblewimble inspirou vários projetos: entre outros, “Grin em 2017 e o projeto “Beam” em 2018.

Grin foi o primeiro projeto a implementar o protocolo Mimblewimble. Foi lançado no “Github” por um utilizador com o pseudónimo “Ignotus Peverell“. Um investigador do “Blockstream” publicou uma versão modificada do protocolo que ganhou muita tração na comunidade de programadores da Bitcoin. Grin lançou vários testnets (rede de testes) antes da mainnet (rede principal) ser lançada em 2019. Grin usa Cuckoo Cycle Proof-of-Work, um mecanismo de consenso que foi projetado para ser resistente ao ASIC, mas tal acabou por não se verificar.

Beam é outra implementação do Mimblewimble, mas utiliza o Equihash como algoritmo de consenso. Beam foi lançado em 2018 numa testnet pública, e em 2019 na mainnet. Além de pagamentos confidenciais, a rede Beam permite a criação de tokens de ativos e instrumentos de dívida que preservam a privacidade, apoiando transações complexas, como atomic swaps, transferências de tempo bloqueado e pagamentos de contas caucionadas. Alternativamente, a rede também permite a auditabilidade on-chain. Em conformidade com os regulamentos existentes, isto poderia permitir aos auditores autorizados ver a lista completa das transações e qualquer documentação relevante.

Outros projetos de tokens de preservação da privacidade são: “Aced“, “Apollo“, “Arqma“, “Arpa chain“, “Beldex“, “Bulwark“, “Bytecoin“, “Bzedge“, “Crypticcoin“, “CloakCoin“, “CUTcoin“, “Cova“, “DAPS Coin“, “Deeponion“,”Digitalnote“, “Dusk“, “Horizen“, “Hush“, “Innovacoin“, “Komodo“, “Loki“, “Lobstex“, “Navcoin“, “Nix“, “Noir“, “Nonerov“, “Origo“, “Particl“, “pEOS“, “Pivx“, “Piratechain“, “Phore“, “Ryo“, “Safex Cash“, “Safecoin“, “Solariscoin“, “Spectrecoin“, “Stealthcoin“, “Sumokoin“, “Tarush“, “Tixl“, “Veil“, “Verge“, “ZClassic“, “ZCoin“, “Zumcoin“, e “Xuez“. Dependendo do seu estágio evolutivo e da combinação dos métodos utilizados, as redes de tokens de privacidade têm diferentes trade-offs entre diferentes pontos fortes e fracos. Não há nenhum caso claro que evidencie um protocolo sobre o outro. Dadas as complexas implicações socioeconómicas envolvidas com os tokens de privacidade, as questões de desenho de protocolo não só envolvem questões técnicas, mas também questões éticas e legais, que serão discutidas mais adiante neste capítulo. Uma lista completa de tokens de privacidade negociados publicamente, incluindo a capitalização de mercado e outros dados, pode ser encontrada, entre outros, em “cryptoslate.com”.[3]

[1] Um esquema de compromisso é um método criptográfico que permite ao utilizador comprometer-se com o valor de um dado (para que este não possa ser alterado posteriormente), mantendo os dados em segredo.

[2] https://explorer.zcha.in/statistics/values

[3] https://cryptoslate.com/cryptos/privacy/

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os projetos analisados acima são, na sua maioria, tokens de protocolo de redes de pagamento clássicas. Muitas outras ledgers distribuídas oferecem atualmente contratos inteligentes, processados por máquinas virtuais, que necessitam de processos adicionais e blocos de construção Web3, que também requerem recursos de preservação de privacidade embutidos, para que a privacidade possa ser fornecida de ponta a ponta. Eles usam ferramentas criptográficas e mecanismos de mistura similares aos mencionados acima.

No momento da redação deste livro, todos podem monitorizar transações de contratos inteligentes na rede Ethereum usando aplicações como “DappRadar”, razão pela qual o ecossistema Ethereum começou a desenvolver soluções de preservação da privacidade. O “Zether” é um projeto que pesquisa mecanismos de pagamento privados em contratos inteligentes da Ethereum, incluindo aplicações que se baseiam na Ethereum, tais como canais de pagamento. A “Keen Network também está a desenvolver uma camada de privacidade para a rede Ethereum. A sua abordagem é criar recipientes para dados privados fora da cadeia, a fim de evitar trilhos de dados na ledger. O “Starkware está a implementar zk-STARKs, um protocolo que se concentra na movimentação de cálculos e armazenamento off-chain, ao mesmo tempo em que fornece um certo nível de privacidade. O projeto “Nightfall” está a ser desenvolvido pelo EY com o objetivo de “integrar um conjunto de contratos inteligentes e micro-serviços, e o kit de ferramentas ZoKrates zk-snark, para permitir que os tokens padrão ERC-20 e ERC-721 sejam transacionados na Blockchain Ethereum com total privacidade”. A rede Ethereum está a planear incluir o Zk-Snarks no nível de protocolo numa atualização futura. A “Parity” também está a trabalhar em recursos de transações privadas que permitem o armazenamento, modificação e visualização de dados criptografados na Blockchain Ethereum. Outras redes de contratos inteligentes como “Enigma, “Origo, “Covalent e “Oasis Labs (protocolo Ekiden) também começaram a desenvolver características de preservação de privacidade nativamente nos seus protocolos.

Os canais de pagamento e as sidechains (cadeias laterais) permitem que os utilizadores façam transações off-chain (fora da cadeia) e armazenem apenas os resumos das mudanças de Estados na mainnet, o que significa que qualquer transação que seja liquidada off-chain, nunca aparece na mainnet. No entanto, a privacidade dos dados off-chain depende das características de privacidade fornecidas pelos respetivos protocolos. O “BOLT, por exemplo, é uma solução para um canal de pagamento privado que utiliza “blind signatures” (assinaturas cegas) e provas de conhecimento zero. Está a ser construído sobre a rede Zcash, mas deve ser capaz de interoperar com a rede Bitcoin e Ethereum no futuro. “Orchid” é uma alternativa à rede Tor com o objetivo de tornar mais difícil o rastreamento da atividade dos utilizadores na Internet. Tais redes precisam de “relay nodes” (nós de relé) e de “bridge nodes” (nós de ponte) para esconder a localização de um computador da vigilância da rede ou da análise de tráfego. Na rede Tor, existem apenas cerca de 6000 nós de relé e menos de 2000 nós de ponte.[1] Os governos que querem proibir a rede Tor poderiam colocar na lista negra todos os nós de relé e de ponte, impedindo os seus cidadãos de aceder à rede Tor. É por isso que Orchid está a desenvolver incentivos tokenizados para atrair mais utilizadores e instituições para se tornarem “relayers” na rede, com vista a aumentar a dificuldade de bloquear a rede sem bloquear uma grande parte da Internet. A  Rede Mysterium está a desenvolver uma versão descentralizada da Rede Privada Virtual (VPN). A “NuCypher” está a trabalhar numa solução descentralizada de gestão de chaves (um HTTPS descentralizado) para proteger contra atores maliciosos (os chamados ataques “man-in-the-middle“) autenticando o site acedido. Ele usa “reencriptação proxy”[2] para proteger a integridade e a privacidade dos dados trocados.

 

Aspetos Legais e Políticos da Privacidade

O dicionário de Oxford define privacidade como um “estado em que uma pessoa não é observada ou interrompida por outras pessoas” ou o “estado de estar livre da atenção pública”. No contexto dos países governados democraticamente, a privacidade individual é explicitamente regulada em vários contextos e em vários graus, por vezes até a um nível constitucional. O Ato do Segredo de Correspondência, por exemplo, é um direito constitucional fundamental que data dos séculos XVII e XVIII em países como a Alemanha, a Áustria ou a França. Ele garante o direito a que a correspondência postal em trânsito não seja aberta por instituições governamentais ou privadas. Este direito foi adotado para tecnologias de comunicação posteriores, como o telefone e a Internet. Embora os Estados Unidos não concedam o direito ao sigilo da correspondência explicitamente a nível constitucional, tais direitos têm sido defendidos através da jurisprudência baseada na Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América. A Quarta Emenda também regula os direitos de privacidade relacionados com a privacidade do lar e da propriedade privada. É possível reinterpretar o segredo da comunicação e a santidade da propriedade privada e do lar como o “direito à criptografia”. No entanto, as jurisdições nacionais variam quanto ao “direito de utilizar a encriptação”. Em alguns países, tal como a França, o direito à encriptação criptográfica foi incluído na legislação nacional.[3] A UNESCO publicou também documentos com recomendações sobre o direito humano à encriptação. Outros países democráticos, como a Alemanha, os EUA e o Reino Unido, não possuem tais leis.

Embora a era da Internet tenha impulsionado o empreendedorismo, revolucionado a comunicação, fortalecido o jornalismo de cidadania e possibilitado plataformas como o Wikileaks, ela também desencadeou uma discussão sobre como lidar com a crescente pegada digital que as aplicações da Internet têm vindo a gerar. No contexto das aplicações da Internet em geral e do comércio eletrónico em particular, as autoridades reguladoras começaram a implementar regulamentações cada vez mais centradas na preservação da privacidade. Adotado em 2016, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia inspirou outros países fora da UE a adotar regulamentos semelhantes. De acordo com esse regulamento, a privacidade tem a ver com “capacitar os utilizadores a tomarem suas próprias decisões sobre quem pode processar os seus dados e com que finalidade”. Contudo, este regulamento está profundamente enraizado na Web2 centrada no cliente-servidor, na qual muitos dos nossos dados privados são geridos por instituições de confiança funcionando como guardiões dos nossos dados.

No contexto da Web3, a República Checa e a Finlândia têm regulamentos em vigor que exigem que os cidadãos entreguem as suas chaves privadas das suas carteiras caso a autoridade de aplicação da lei os obrigue a fazê-lo. Outros países, como a Coreia do Sul e o Japão, proibiram por completo os tokens de privacidade. Em 2018, o Ministério Federal das Finanças Alemão expressou a sua preocupação com o aumento do uso de tokens de privacidade, tal como Monero, no contexto de atividades criminosas e transações na Darknet. A recente regulamentação do GAFI, aprovada em 2019, exige que todos os chamados “Provedores de Serviços de Ativos Virtuais” revelem a identidade das partes da transação, sujeitando-as às exigências de KYC. Algumas Exchanges de tokens já começaram a retirar da listagem os tokens de privacidade, exceto para o Zcash, que não fornece privacidade por padrão. Monero ainda parece estar listado em muitas Exchanges, mas ainda não se sabe por quanto tempo isto irá durar.

Mesmo quando a privacidade, e o direito à encriptação, são explicitamente regulamentados, o compromisso entre privacidade individual e interesse público está sujeito a pontos de vista políticos. É frequentemente uma questão de discrição humana decidida por juízes, e regulada e aplicada com grande variação dependendo da filosofia de governo de um país ou de uma comunidade de Estados-Nação. Os trade-offs entre interesses públicos e privados estão sujeitos a discussões públicas contínuas e são tratados de forma diferente pelos governos de todo o mundo. A legislação pode variar desde a concessão do direito à encriptação a todos os cidadãos, até à exigência de desencriptação de dados pessoais a pedido das autoridades governamentais. O Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia e regulamentos semelhantes de preservação da privacidade contradizem, no entanto, o alcance crescente do combate ao branqueamento de capitais (AML) e o subsequente regulamento KYC (Know-Your-Customer) a nível mundial. Não está claro se os dois esforços regulamentares contraditórios irão coordenar a nível nacional ou internacional, a fim de encontrar um equilíbrio entre os interesses públicos e privados. A questão da nossa crescente pegada digital e das possibilidades de vigilância subsequente tem sido discutida por ativistas e autores como Evgeny Morozov (que alertou para a vigilância em massa, repressão política e fake news, apelando a uma perspetiva mais socioeconómica da tecnologia)[4], Edward Snowden (que revelou uma série de programas de vigilância internacional)[5], ou mais recentemente por autores como Shoshana Zuboff (que escreveu sobre o “capitalismo de vigilância” e a mercantilização de informações pessoais).[6]

Um compromisso semelhante entre transparência e privacidade existe na Web3 e precisa de discussões mais generalizadas. A questão da “privacidade imposta” versus “pública por defeito”, por exemplo, é uma questão complicada. A rede Monero usa a “privacidade imposta” por padrão para todas as transações. Como resultado, os órgãos reguladores terão dificuldade em coagir os utilizadores a revelar deliberadamente os seus dados. Em tal configuração, os utilizadores também estão protegidos contra a revelação acidental dos seus dados. O Zcash, por outro lado, usa um mecanismo “público por defeito”. Os utilizadores podem optar voluntariamente por ser transparentes ou não, o que em teoria torna esta tecnologia mais flexível para casos de utilização em indústrias regulamentadas onde é necessária certa transparência e auditabilidade. No entanto, em tal configuração, os utilizadores também podem ser penalizados pelos reguladores se fizerem uso de transações privadas, levando à não utilização de recursos de privacidade no conjunto. Esta pode ser uma das razões pela qual a maioria das transações Zcash ainda são realizadas em transparência, embora, em teoria, elas forneçam “transações protegidas”.

A promessa da Web3 é uma Internet mais capacitada e descentralizada (e por tal, mais inclusiva). Mas como projetamos os protocolos dessas redes da Web3 ainda não está “escrito na pedra” e precisará de uma ampla discussão socioeconómica. Dependendo do nível de técnicas de ofuscação implementadas, ou da falta delas, as redes Blockchain podem tornar-se máquinas de libertação (mais privacy-by-design), ou máquinas eficazes de vigilância e execução (sem privacy-by-design). Numa rede 100% ofuscada, não seria possível, por exemplo, rastrear a proveniência de bens ou serviços, pelo que os governos nacionais teriam dificuldades em determinar e fazer cumprir o pagamento de impostos, a menos que houvesse uma “privacy by design” mais sofisticada que revelasse apenas dados socioeconómicos selecionados às entidades relevantes, respeitando simultaneamente a regulamentação da proteção de dados. Esta é, no entanto, uma discussão política que precisa ser resolvida com base no consenso dos membros de várias comunidades da Internet, Estados-Nação e ao nível das instituições internacionais.

[1] Encontre métricas atualizadas aqui: https://metrics.torproject.org/networksize.html

[2] A reencriptação por proxy permite que alguém transforme textos criptográficos de uma chave pública para outra sem aprender nada sobre a mensagem subjacente.

[3]  “O artigo 30(I) da Lei nº 2004-575 de 21 de junho de 2004 sobre a confiança na economia digital prevê que o uso de meios de criptologia é livre” [2].

[4] Morozov tem sido cético quanto à capacidade da Internet de tornar o mundo mais “democrático”, referindo-se a ele como “ciber-utopismo”. Em vez disso, ela pode ser usada para controlo de informação e engenharia social. Ele afirma que a Internet fornece ferramentas poderosas para “vigilância em massa, repressão política e difusão de propaganda nacionalista e extremista”. Ele apela para uma perspetiva mais socioeconómica da tecnologia e critica os “libertários da internet” por suas afirmações muitas vezes irrefletidas sobre a natureza da internet e a descreve como pseudo-aberta, pseudo-disruptiva e pseudo-inovadora.

[5] Edward Joseph Snowden copiou e vazou informações altamente confidenciais da Agência Nacional de Segurança (NSA) em 2013 durante seu tempo como subcontratado da CIA, revelando uma série de programas de vigilância executados por várias instituições de diferentes países. Com o tempo, ele revelou milhares de documentos classificados da NSA, o que desencadeou uma discussão global sobre segurança nacional e privacidade individual. Ele agora vive no exílio russo.

[6] Zuboff descreve a mercantilização de informações pessoais. Ela descreve a tendência de acumulação de dados, criticando que muitas empresas e instituições colhem e capitalizam dados pessoais sem mecanismos de consentimento. Ela compara “capitalismo industrial” e “capitalismo de vigilância”, explicando “capitalismo industrial” como exploração da natureza, e “capitalismo de vigilância” como exploração da natureza humana.

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

As Exchanges de tokens oferecem serviços para aqueles que querem comprar e vender tokens. Atuam como intermediários de confiança e criadores de mercado. Embora sejam um interveniente importante nesta nova economia de tokens, continuam a ser predominantemente centralizadas, o que as torna vulneráveis a hacks, má gestão, volatilidade de volume, ou censura. Os atomic swaps e as Exchanges Descentralizadas tentam mitigar estes riscos.

Pese embora as redes Blockchains e outras ledgers distribuídas permitam a transferência de tokens sem intermediários, elas só permitem o envio de tokens de uma carteira da rede para outra carteira dessa rede. Um token só pode ser gerido por um tipo de rede e não se pode movimentar nativamente entre redes distintas por razões de interoperabilidade. Como resultado, a compra e venda de tokens ainda requer os serviços de Exchanges de tokens. Várias Exchanges online oferecem esses serviços e agem como intermediários de confiança. Elas assemelham-se a bancos online que tomam os tokens dos seus clientes à sua custódia e gerem a negociação de tokens entre utilizadores dentro das suas plataformas.

Para os utilizadores, trocar um token por outro pode ser difícil e demorado, dependendo da popularidade e do status legal de um determinado token. Os tokens menos populares ou altamente controversos só podem ser listados em Exchanges de menor dimensão e consequentemente com pares de tokens limitados, o que significa que os utilizadores precisariam (i) registarem-se para todas essas Exchanges e (ii) trocar tokens diversas vezes, antes de poderem comprar o token do seu interesse. Mesmo que uma Exchange disponibilize uma panóplia alargada de tokens, os pares token/fiat são frequentemente limitados. Como resultado disso, a troca de tokens pode muitas vezes consumir tempo e ser financeiramente dispendiosa. Por vezes, até mesmo tokens de reputação são listados numa só Exchange, forçando os utilizadores a negociar numa Exchange na qual eles não utilizariam de outra forma. Os potenciais compradores de um token podem, portanto, decidir não comprar um determinado token se for muito complicado ou demasiadamente arriscado fazê-lo. As Exchanges que listam uma variedade alargada de tokens tornaram-se mais populares, pois oferecem aos portadores de tokens um balcão único para comprar e vender diversos tipos de tokens, sem a necessidade de se registarem noutra Exchange para comprar ou trocar qualquer outro token.

As Exchanges de tokens podem decidir elas próprias se incluem ou não um token. Elas tornaram-se as criadoras de mercado e novas guardiãs nesta economia tokenizada emergente. Em agosto de 2016, por exemplo, quando a rede Ethereum realizou o controverso hard fork como resultado do ataque exploratório da TheDAO,[1] a cadeia mais curta da Ethereum (“Ethereum Classic“) não tinha qualquer valor de mercado. Entretanto, quando a Exchange Poloniex decidiu listar o token “Ethereum Classic“, a dinâmica do mercado mudou e outras Exchanges começaram também a listar o token. Embora não fosse a primeira vez que havia um fork numa rede Blockchain, foi a primeira vez que o token de uma cadeia minoritária foi listado numa Exchange, dando à rede um valor económico.

[1] Uma vulnerabilidade numa das funções do contrato inteligente, concebida para representar direitos minoritários, foi explorada e utilizada para drenar 3,6 milhões de Ether do saldo da TheDAO (cerca de 150 milhões de USD na altura).

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

A maioria das Exchanges hoje em dia são Exchanges centralizadas (CEX) que realizam serviços intermediários entre compradores e vendedores de tokens. Elas permitem a simples compra e venda de tokens, também contra moeda fiat, e proporcionam uma fácil criação de carteiras e gestão de tokens, incluindo a salvaguarda de chaves privadas. Ao contrário de muitos entusiastas precoces da criptografia, que ainda gerem os seus tokens através das suas próprias carteiras (carteira de hardware, carteira de software ou carteira em papel), os recém-chegados muitas vezes preferem terceirizar a gestão de carteiras para Exchanges online, que atuam como guardiãs dos seus tokens. As Exchanges centralizadas operam em tecnologia cliente-servidor clássica e não estão sujeitas aos mesmos mecanismos de segurança das redes Blockchain. Embora ofereçam serviços relevantes, elas são vulneráveis a hacks, má gestão, volatilidade de volume ou censura. Os hacks e a má gestão foram os maiores problemas no passado, especialmente nos primeiros anos, quando o mercado estava menos maduro e desregulamentado. O Mt. Gox“, que era a maior Exchange de Bitcoin à época, suspendeu as operações e entrou com pedido de falência em 2014. Devido à má gestão, aproximadamente 850.000 BTC desapareceram, muito provavelmente roubados. Seguiram-se muitos outros casos, tais como os ataques à Bitfinex” ou Coincheck“. Estes incidentes levaram à ideia errada do público em geral de que as redes Blockchain não são seguras.

As Exchanges centralizadas muitas vezes não dão aos seus clientes controlo total sobre as suas chaves privadas, uma vez que eles negoceiam nos seus próprios livros-razão, ou seja, off-chain. Muitas vezes não têm carteiras de utilizador dedicadas aos seus clientes, tornando inútil uma chave privada. Os clientes entregam o controlo total sobre os seus tokens. Exchanges de menor dimensão, que têm menos liquidez, podem experimentar volatilidades de preços, tais como quedas rápidas e picos de preços se houver uma mudança repentina na oferta e procura de tokens. Isso torna as Exchanges mais pequenas sujeitas à manipulação do mercado e menos atraentes aos olhos dos utilizadores. As Exchanges centralizadas estão também sujeitas a regulamentação governamental e devem, portanto, atender aos requisitos KYC (conheça o seu cliente) dos países, o que significa que os clientes têm que fornecer uma identidade completa ao registrarem-se numa Exchange; isso pode levantar questões de privacidade e censura.

A interoperabilidade geral da Blockchain é uma solução para o problema da centralização, que está atualmente a ser abordada por projetos como Cosmos, Polkadot, “Wanchain“, “Chainlink“, “Arc“, “Aion“, e “AVA“. Os atomic swaps são outra solução, com viabilidade mais imediata.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os atomic swaps permitem a negociação P2P em cross-chain e podem ser executados diretamente entre redes Blockchain separadas, carteira a carteira, sem recurso a um intermediário de confiança, como uma Exchange. Usam um tipo de contrato inteligente chamado de Hash Time-Locked Contract (HTLC) para assegurar a transação token, certificando-se de que ambas as partes da transação token preenchem os requisitos. Os HTLC são similares aos state channels que lidam com liquidação de pagamentos off-chain através de contrato inteligente. Os utilizadores permanecem em total controlo das suas chaves privadas, e logo, dos seus tokens, ao realizar tal transação.

Vamos supor que Alice e Bob querem trocar tokens de diferentes redes Blockchain P2P sem um intermediário, como uma Exchange. Bob quer vender bitcoin (BTC) em troca de litecoin (LTC), e Alice quer vender litecoin (LTC) em troca de bitcoin (BTC). Como as duas redes não podem comunicar entre si diretamente, Alice e Bob usam um HTLC para bloquear os seus tokens por um período de tempo pré-definido. Ambos os destinatários, Bob e Alice, precisam criar uma prova criptográfica de pagamento antes que o tempo expire. Os tokens são bloqueados através de várias assinaturas num contrato inteligente. Este bloqueio de estado é registado em ambas as redes. Os tokens só são trocados se as suas chaves secretas coincidirem. Para depositar seus tokens, Alice tem primeiro que criar um HTLC. Ela cria uma chave secreta e gera um hash, a partir do qual o endereço do contrato inteligente é derivado e para o qual ela pode agora enviar seus tokens. Ela também envia esse hash para Bob, que o usa para replicar o endereço do contrato inteligente e depositar seus tokens nesse mesmo contrato inteligente. Alice pode desbloquear os tokens que Bob depositou usando a sua chave secreta, o que aciona um evento onde Bob recebe a chave secreta para desbloquear os tokens de Alice. Numa transação de fecho, o último compromisso é enviado para ser adicionado à Blockchain.

Os atomic swaps requerem que (i) ambas as partes do swap precisem descarregar as ledgers de ambas as redes; (ii) ambas as redes que gerem os tokens trocados devem suportar HTLC e usar a mesma função de hash criptográfico. Além disso, a fim de conduzir transações de carteira para carteira, (iii) a carteira utilizada deve também ter a capacidade de suportar atomic swaps.

Apesar de os atomic swaps permitirem a troca de tokens P2P, eles não resolvem o problema da coincidência de vontades. Eles só serão úteis para pessoas que conhecem outras pessoas dispostas a comprar a quantidade exata de tokens que se quer vender exatamente ao mesmo tempo em que se quer vendê-las. A probabilidade de isto acontecer para investidores de retalho é bastante baixa. As Exchanges descentralizadas que usam atomic swaps poderiam resolver ambos os problemas.

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

As Exchanges Descentralizadas (DEX) são aplicações descentralizadas executadas numa ledger distribuída para permitir que os utilizadores negociem tokens sem a necessidade de uma instituição para compensar as liquidações. A negociação é liquidada diretamente pelas ledgers (on-chain) e pode potencialmente mitigar muitos desafios das Exchanges centralizadas. Uma Exchange totalmente descentralizada faria uso de atomic swaps, ou métodos similares, com uma camada de transparência adicional que permite a negociação entre dois proprietários aleatórios de tokens que não se conhecem, possam viver em países diferentes e que não saibam como se encontrar fisicamente um com o outro. As Exchanges descentralizadas existentes oferecem vários níveis de descentralização, muitas vezes funcionando numa infraestrutura parcialmente centralizada, e não oferecendo swaps de carteira–a-carteira. Exemplos atuais são Komodo, WavesDex, “OasisDex, Radar Relay“, “BarterDex, “Bisq“, “StellarDex”, e EtherDelta“.

A maioria das Exchanges autoproclamadas descentralizadas não são totalmente descentralizadas (ainda) e estão sujeitas a diversos desafios. Devido aos livros de ordens on-chain, elas são também lentas e caras, pelo menos enquanto as questões de escalabilidade das redes Blockchain públicas não forem resolvidas. Cada vez que uma ordem é lançada ou modificada, isso gera altos custos indiretos nos custos de transação da rede, condicionando a ledger. Atualmente, as Exchanges descentralizadas beneficiam principalmente os traders que já estão posicionados em mercados de tokens. As DEX não são necessariamente adequadas para recém-chegados ao mercado, pois não resolvem a questão da negociação de moedas “fiat” nacionais por tokens. Os recém-chegados ao mercado de tokens criptográficos provavelmente ainda usarão bolsas centralizadas, o que lhes permite comprar facilmente tokens através de fiat. As questões atuais de usabilidade das Exchanges descentralizadas contribuem ainda mais para a baixa liquidez dos tokens e baixos volumes de negociação, o que as torna propensas à manipulação do mercado. No entanto, uma vez resolvidos esses desafios, as DEX poderiam permitir um mercado mais líquido e menos manipulável, onde a procura e a oferta poderiam existir sem intermediários arbitrários.

Para que as Exchanges descentralizadas alcancem a adoção generalizada, ainda nos faltam os efeitos de rede necessários. Esses efeitos de rede dependem de quando e como a interoperabilidade geral da ledger será resolvida, incluindo atomic swaps cross-chain resilientes, padrões de interoperabilidade ou soluções piggyback como o token Pantos“. Além disso, os ativos correntes, incluindo moedas “fiat”, precisam ser tokenizados para catalisar os efeitos de rede necessários. As Exchanges descentralizadas provavelmente tornar-se-ão uma realidade se e quando as transações diárias forem predominantemente liquidadas usando tokens criptográficas e ledgers distribuídas. Provavelmente precisaremos de uma malha de Exchanges interconectadas para ter profundidade de mercado suficiente para o uso global e generalizado de Exchanges de tokens P2P.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os serviços de financiamento descentralizados utilizam contratos inteligentes para criar mercados bilaterais em prol de um sistema de investimento e financiamento P2P. Qualquer ativo não-bancário, como commodities, títulos, bens imóveis, obras de arte, ou quotas de PME poderia, no futuro, ser tokenizado e colateralizado, o que poderia levar a uma convergência dos mercados financeiros e da economia real.

A execução dos serviços de crédito e de empréstimo com base em contratos inteligentes tem custos operacionais mais baixos do que os serviços financeiros legados, uma vez que a verificação da conformidade poderia ser executada na hora. Numa configuração totalmente descentralizada, os serviços financeiros P2P requerem apenas uma carteira criptográfica, sem sistemas complexos de identificação. Eles permitem maior controlo, segurança e inclusão. Segurança e controlo referem-se ao facto de alguém poder escolher serviços não privativos onde esse alguém mantém controlo das suas chaves privadas.[1] Inclusão refere-se ao facto de esses serviços, que atualmente são complementares aos nossos sistemas financeiros atuais, poderem conceder acesso a indivíduos que antes teriam sido excluídos dos serviços financeiros. É útil relembrar que existem na atualidade diversas comunidades ao redor do mundo privadas do acesso a bancos ou a serviços financeiros.

Serviços de financiamento totalmente descentralizados permitem um mercado bilateral, usando contratos inteligentes para créditos e empréstimos P2P de tokens. Qualquer ativo não-bancário, como commodities, títulos, imóveis, arte, ações de PME, etc., poderia, no futuro, ser representado por um token. Commodities, moedas nacionais e títulos já estão a ser representados e podem ser negociados nos mercados atuais, enquanto as ações de bens imóveis, arte e ações de PME ainda estão num estágio inicial de concepção. Qualquer token transferível representativo de um ativo poderia ser usado como garantia colateral em soluções descentralizadas de empréstimo, o que poderia mudar a dinâmica do nosso sistema económico global. A integração de tais ativos não-bancários tokenizados com esquemas de crédito e empréstimo permitiria transações instantâneas, o que supera as possibilidades dos sistemas legados que temos hoje.

 

Empréstimos Concedidos em P2P

A maioria dos investidores de hoje compra tokens apenas para investimentos a longo prazo. Os tokens geralmente permanecem inativos, numa carteira de hardware, de software ou de papel, já que os portadores de tokens esperam que seu valor aumente com o tempo, não fazendo uso dos mesmos para pagamentos diários. Os protocolos de aplicações de investimento P2P permitem que os portadores de tokens convertam seu “capital inativo” em “capital de giro”, usando contratos inteligentes que permitem ganhos de taxas de juro periódicas. Os investimentos P2P poderiam ser facilmente intermediados por um contrato inteligente. Ativos “dormentes” e anteriormente não-bancários de todo o mundo podem agora ser tokenizados para criar um mercado de investimento P2P líquido. Qualquer pessoa pode ganhar um rendimento passivo relativamente livre de risco nos seus investimentos de tokens através dos juros pagos pelos mutuários. Por outro lado, custos operacionais mais baixos poderiam também tornar os investimentos mais acessíveis a uma gama mais ampla de pessoas ou instituições.

 

Empréstimos Contraídos em P2P

O financiamento P2P permite a contração de empréstimos de fundos contra uma garantia colateral de tokens que determinada pessoa possui, potencialmente pagando taxas de juro mais baixas do que no sistema financeiro atual. Ativos não-bancários precedentes, tais como commodities, títulos, arte ou bens imóveis, podem agora ser tokenizados e alavancados contra (i) fiat ou outros (ii) cripto-tokens transferíveis. Os mutuários podem bloquear os tokens que possuem, como garantia colateral num contrato inteligente. Este colateral serve como uma garantia de que os financiadores serão reembolsados. Como a maioria dos tokens tem preços voláteis, as aplicações descentralizadas de financiamento só permitem que alguém peça emprestado uma certa percentagem do valor da sua garantia. Se o preço de mercado da garantia colateral começar a cair, o contrato inteligente é programado para vender os tokens colaterais a um preço à vista (spot) pré-definido ou de leilão de mercado para mitigar o risco de contraparte do credor. O empréstimo colateralizado é atualmente a única opção, uma vez que os sistemas descentralizados não têm um processo KYC para assegurar os fundos com base na identificação e reputação. Isso, no entanto, pode mudar à medida que soluções mais sofisticadas de identificação e reputação forem evoluindo. Na altura da redação deste livro, o principal caso de utilização do empréstimo P2P é o trading de margens (a prática de pedir fundos emprestados para fazer um investimento onde se antecipa ter um lucro maior do que os juros que se tem de pagar. Os fundos emprestados são usados para alavancagem, o que significa que tanto os lucros como as perdas serão grandes).

 

Flash Loans

Os Flash Loans (empréstimos flash) são um tipo específico de empréstimo P2P que é válido dentro de uma transação de rede e deve ser reembolsado até ao final dessa transação. O credor pode oferecer empréstimos a risco zero e o mutuário pode obter qualquer quantidade de tokens, sem garantia colateral, desde que o mutuário possa devolver todos os tokens emprestados dentro da mesma transação. O risco de incumprimento e iliquidez que um credor normalmente suporta é reduzido a zero devido ao facto de o mutuário ter que devolver os tokens emprestados dentro da mesma transação, caso contrário o contrato inteligente não executará o negócio. Uma série de operações de contrato inteligente podem ser programadas de forma que ou tudo ocorra, ou nada ocorra. Devido à natureza atómica[2] das redes Blockchain, as transações baseadas em contratos inteligentes podem ser revertidas durante a execução, se a condição de reembolso não for satisfeita. O conceito foi introduzido pela primeira vez em 2018 pelo “Marble Protocol“. As transações de Flash Loans falharão no caso de (i) taxas de transação insuficientes, (ii) transações conflituantes, ou (iii) se outra condição dentro da transação não puder ser satisfeita. Os empréstimos são retirados numa pool pública de liquidez controlada por contrato inteligente, o que significa que qualquer pessoa pode a qualquer momento pedir emprestado a quantidade total de tokens disponíveis na pool. Os serviços de DeFi relevantes no contexto de um Flash Loan são Exchanges descentralizadas, negociação descentralizada de margens ou serviços de investimento/financiamento.

 

Protocolos de Empréstimo P2P

MakerDAO é um dos projetos mais experiente, que foi lançado em 2017 para criar um sistema de tokens estáveis. O token estável DAI traz embutido aspetos de empréstimo descentralizado. O DAI é emitido contra um token colateral (ETH). Os mutuários recebem tokens DAI recém-criados, bloqueando os seus tokens ETH como garantia colateral, usando uma posição de dívida colateralizada (CDP) baseada em contrato inteligente. A atual taxa de colateralização é de 150 por cento. A taxa de juro é volátil e anda em torno de 2,5% a 19,5% a cada mês. Diversos tokens são suportados como colateral.

Uniswap é uma Exchange descentralizada de tokens que funciona sem livro de ordens. Em vez disso, elas usam “pools de liquidez” para permitir a troca de tokens. Cada token tem uma pool global de investimentos/financiamentos que representa um mercado para as posições de crédito e empréstimo desse token. Em tal configuração, qualquer detentor de tokens pode contribuir com os seus tokens para a pool de liquidez e ganhar juros sobre suas posições de tokens. A atualização de 2020 do protocolo Uniswap permite trocas diretas de token para token, em vez de depender de pares de ativos tendo ETH como um token de base fixa. A atualização do protocolo também introduziu “flash swaps“, uma função de flash loan que permite aos utilizadores retirar tokens para negociações instantâneas on-chain e devolvê-los até ao final da transação. O upgrade foi concebido para ser mais resistente contra potenciais ataques e manipulações como os “ataques flash” de fevereiro de 2020, que serão descritos mais adiante neste capítulo.

Compound foi lançado em 2018 como um protocolo de empréstimo descentralizado com pools de liquidez. Os financiadores podem depositar os seus tokens em pools de empréstimos para ganhar juros. Os empréstimos são tokenizados. A taxa de juro de cada token emprestado é definida algoritmicamente com base na oferta e na procura de tokens em cada pool e, portanto, variável. Determinada pessoa pode receber um tipo de token em troca do depósito de outro tipo de token (por exemplo, cDAI para DAI.) Os empréstimos não têm duração fixa, o que significa que os financiadores podem proceder à retirada dos seus fundos a qualquer momento. Os empréstimos têm também uma duração ilimitada. A taxa de garantia atual é de 150 por cento. Os tokens suportados como colateral são atualmente: ETH, DAI, BAT, REP, USDC, WBTC e ZRX.

Dharma foi lançado em 2019 e inicialmente não estava totalmente descentralizada, oferecendo empréstimos e créditos a taxas de juro fixas e durações fixas até 90 dias. Os tomadores de empréstimos colaterizavam a sua conta de contrato inteligente com 150 por cento do valor dos fundos emprestados, e a taxa de juro era determinada pela administração da Dharma, ao invés de um algoritmo de mercado. Mais tarde redefiniram o seu plano de ações e no momento estão a usar as pools de liquidez da Compound, que determinam o algoritmo das taxas de juro baseado na oferta e na procura dessas pools. O token suportado como colateral é atualmente o DAI.

dYdX é ao mesmo tempo uma plataforma descentralizada de empréstimo e uma Exchange. O suporte à negociação, em paralelo com empréstimos, permite mais funcionalidades do que outras plataformas de empréstimo, sendo por isso que muitos traders de margens parecem preferir o serviço. Similar à “Compound“, ela usa uma abordagem baseada em pool com taxas de juro variáveis determinadas algoritmicamente. Tem requisitos de garantias colaterais mais baixos (125% inicial, 115% mínimo) e a contração de empréstimos está limitada a 28 dias. Os tokens que servem de colaterais são atualmente: DAI, ETH e USDC.

Nexo é uma plataforma de empréstimo baseada em contratos inteligentes que oferece empréstimos instantâneos em mais de 45 moedas fiat. Qualquer um pode agrupar os seus tokens (tokens de ativos, tokens de pagamento) existentes num contrato inteligente e pedir emprestado imediatamente. Traz embutido um serviço off-ramp que deposita o dinheiro na conta bancária a uma taxa de juro fixa. O empréstimo pode ser reembolsado a qualquer momento contra a liberação dos tokens.

Outros exemplos de sistemas descentralizados de empréstimos são “Aave, “Bloqboard“, “BlockFi, “Cred“, “Colendi, “Curve“, “ETHLend“, “EOS REX”, “Lendoit“, “NUO“, “SALT“, “Iearn“, “InstaDapp“, “Uniswap“, “Crypto.com”, “Nexo”, “INLOCK”, “ICONOMI”, “CoinLoan”, “Nuo Network”, “LendaBit”, “Bitbond”, “BTCpop”, “Helio Lending”, “Lendingblock”, “xCoins”, e “Genesis Capital”, que oferecem vários graus de descentralização e funcionalidades.

 

 

Flash Attacks

Os “ataques flash” referem-se a vetores de ataque de capital intensivo a serviços financeiros descentralizados viabilizados por Flash Loans. Os primeiros ataques flash ocorreram em 2020 no “bZx”, um serviço de empréstimos descentralizado. Uma pessoa anónima ou grupo de pessoas sem quaisquer fundos pediu emprestado instantaneamente centenas de milhares de dólares através de ETH, explorando on-chain uma série de vulnerabilidades do protocolo que não tinha sido previamente submetido a testes de stress dentro de uma única transação de ETH. Isto aconteceu apesar dos avisos prévios de diferentes pessoas dentro da comunidade criptográfica. Meses antes, um hacker anónimo, SamCZSun,[3] expôs a possibilidade de que empréstimos flash poderiam ser usados para manipular feeds de dados sobre preços de ativos (oráculos). Taylor Monahan, o fundador do Mycrypto.com, também tinha apontado vulnerabilidades em tweets públicos.[4] Embora o bZx tenha afirmado ter resolvido o problema, os Flash Loans foram usados para drenar cerca de 950.000 USD em apenas dois ataques no espaço de quatro dias: uma primeira vez em 14 de fevereiro de 2020 (350.000 USD), e uma segunda vez durante um ataque copycat com algumas modificações em 18 de fevereiro de 2020 (600.000 USD). O(s) atacante(s) aproveitou(aram) estas vulnerabilidades do oráculo e um bug dentro do código do protocolo bZx para garantir o pagamento.

Numa configuração DeFi, os contratos inteligentes devem ter sempre informações sobre o valor do token colateral. Esses dados são obtidos através de oráculos externos, por exemplo, Exchanges de tokens. No entanto, ao contrário dos mercados financeiros tradicionais, onde os preços das ações são negociados apenas numa bolsa de valores específica, e onde o preço de uma ação advém de uma fonte confiável, os tokens podem ser negociados em várias Exchanges, e muitas vezes têm spreads de preços altamente voláteis entre as Exchanges e dentro delas. Este spread através de diferentes exchanges de valores tokenizados cria oportunidades de arbitragem. Pode-se, portanto, lucrar ao pedir emprestado tokens a um preço baixo, e depois vender a um preço mais alto antes de pagar o empréstimo. Todo esse processo pode ser realizado on-chain dentro da mesma transação, uma vez que a maioria dos serviços DeFi, incluindo muitas das Exchanges Descentralizadas, são executadas na rede Ethereum.

Os mutuários de empréstimos flash podem alavancar quantidades quase ilimitadas de fundos para lucrar com as possibilidades de arbitragem, codificando todos os passos no mesmo contrato inteligente, tal como os ataques flash ao “bZx” foram conduzidos. O(s) atacante(s) usou os tokens cedidos através do Flash Loan para manipular o preço de mercado de um token ERC-20 apoiado pelo BTC numa Exchange Descentralizada com pouca profundidade de mercado, bombeando (pump) o preço para 109,80 USD dos 38,00 USD originais, usando uma cadeia de transações e também explorando outras lacunas no código, e pagando o Flash Loan com um lucro de 350.000 USD e mais tarde 600.000 USD. Na indústria financeira atual, tal manipulação de mercado só pode ser conduzida por indivíduos ou instituições com muitos ativos. De certa forma, os Flash Loans democratizam a manipulação do mercado. No entanto, embora não seja preciso nenhum ativo, é preciso um know-how de mercado. As recentes explorações mostraram como mercados com baixa liquidez e contratos inteligentes são propensos a ataques, e que os empréstimos instantâneos em combinação com contratos inteligentes que têm lacunas involuntárias e/ou feeds de dados não confiáveis podem ser explorados.

Existe uma discussão sobre se nos devemos referir a esses incidentes como “ataques”, “hacks” ou “explorações” fazendo lembrar as discussões de 2016 em torno do incidente “TheDAO”. Os ataques demonstram que a comunidade DeFi ainda não desenvolveu mecanismos resistentes a ataques em prol de uma arquitetura DeFi sustentável. O código do contrato inteligente precisa de ser auditado, incluindo superfícies de ataque que podem resultar de oráculos. Alimentadores de dados confiáveis representam problemas arquitetónicos bem conhecidos em contratos inteligentes, pelo que o ataque flash à bZx teria sido evitável. Além disso, a liquidez dos mercados de tokens é essencial para mecanismos de preços eficientes.

Apesar de os protocolos de empréstimo P2P criarem novas e excitantes possibilidades, o cenário é ainda incipiente. No momento de redação deste livro, os serviços descentralizados de empréstimos ainda não podem competir com os sistemas financeiros legados: (i) muitos serviços ainda não estão totalmente descentralizados, (ii) falta de regulamentação, e (iii) processos sem testes de stress, que tornam possíveis explorações de contratos inteligentes, e têm (iv) usabilidade limitada e experiência de utilizador não intuitiva (controlo de sua própria chave privada), (v) baixa liquidez de trocas descentralizadas, e (vi) muitos produtos DeFi ainda estão sobre-colaterizados como resultado da falta de score de crédito ou colaterais compartilhados. Estes são apenas alguns dos muitos desafios que temos pela frente.

[1] A realidade no futuro próximo, no entanto, poderá ser mais complexa devido aos requisitos regulamentares, que muito provavelmente irão supervisionar este cenário ainda incipiente.

[2] “Atomicidade das transações atómicas” é um termo informático que se refere a sistemas de base de dados onde uma série de operações de base de dados pode ser programada de forma a que tudo ocorra, ou que nada ocorra. Ou todas as transações (neste caso, dentro do contrato inteligente) são executadas ou nenhuma delas é executada. Isso impede atualizações parciais do sistema de base de dados.

[3] https://samczsun.com/taking-undercollateralized-loans-for-fun-and-for-profit/

[4] https://twitter.com/tayvano_/status/1229708599867232256

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Numa venda de tokens, os contratos inteligentes são utilizados para emitir tokens criptográficos em troca de tokens existentes inteiramente P2P. Ao contrário dos tokens Blockchain nativos que são emitidos após a extração bem-sucedida de um bloco em contrapartida das contribuições individuais à rede de forma a mantê-la segura, a venda de tokens introduziu um mecanismo estático para a emissão de tokens contra um fee financeiro direto, muitas das vezes mesmo antes de o projeto estar operacional.

 

As vendas de tokens permitem a emissão de tokens criptográficos em troca de tokens existentes, inteiramente P2P. Elas tornaram-se populares com o advento da rede Ethereum. Qualquer pessoa pode emitir e vender tokens com um contrato inteligente. Essas primeiras vendas de tokens eram chamadas de Initial Coin Offerings (ICOs), mas à medida que o termo “token” se tornou mais comum, ofertas de tokens ou ITOs (Initial Token Offerings), e nos casos específicos de títulos, STOs (Security Token Offering), tornaram-se o termo adotado. A ideia principal dessas vendas de tokens era financiar novos projetos através da pré-venda de tokens a apoiantes desses projetos. Esses tokens normalmente seriam trocados por BTC e ETH, já que ambos oferecem alta liquidez de mercado e são mais fáceis de trocar por moedas fiat. Ao contrário das ofertas públicas iniciais (IPOs) altamente reguladas, muitas das primeiras ICOs eram conduzidas sem advogados, intermediários financeiros ou aprovação regulatória e, portanto, pareciam mais semelhantes ao crowdfunding. Os primeiros apoiantes eram muitas das vezes cripto-entusiastas, e não investidores profissionais. Com o tempo, os investidores profissionais começaram a interessar-se por essas vendas de tokens tendo em vista os altos retornos dos investimentos possíveis nos bull market de 2015 a 2017.

Antes de lançar uma venda de tokens, os seus promotores apresentavam o chamado “white paper” descrevendo as especificações técnicas do projeto. No entanto, ao contrário do white paper Bitcoin, que descrevia uma solução tecnológica, muitos dos white papers de recentes vendas de tokens assemelhar-se-iam muitas vezes a simples planos de negócios, muitas vezes carecendo de especificações técnicas ou económicas. As vendas iniciais de tokens na maior parte das vezes não eram claras quanto ao tipo e ao papel do token, o que muitas vezes tornava difícil a um investidor ou apoiante do projeto identificar se elas se assemelhavam a veículos de crowdfunding ou de crowdinvesting. Ao contrário do crowdfunding, onde o investimento é considerado como uma doação, ou uma pré-compra de um produto, as vendas antecipadas de tokens davam aos investidores a possibilidade de um retorno sobre o seu investimento. As vendas antecipadas de tokens muitas vezes pareciam ser uma mistura entre uma doação, um investimento ou um capital de risco. À medida que os reguladores se tornaram mais conscientes das vendas de tokens, as definições também se vieram a tornar mais rigorosas. Oferecer um possível retorno sobre um investimento, especialmente se o token pudesse assemelhar-se a um título, seria um indicador de que o token poderia estar sob a autoridade reguladora de comissões de títulos (sendo considerados como tal security tokens). Os tokens de rede que permitem o uso de um serviço dentro de uma rede, na sua maioria, não o fazem. Os legisladores em todo o mundo ainda estão a recuperar o atraso para compreender os diferentes tipos de tokens, e a derivar os regulamentos necessários.

É importante salientar que a Blockchain Bitcoin nunca teve uma venda antecipada de tokens e que os tokens bitcoin são continuamente cunhados cada vez que um bloco de transações é criado. Ao contrário dos tokens Blockchain nativos que são emitidos via Proof-of-Work, e que incentivam contribuições individuais à rede para mantê-la segura, as vendas de tokens introduziram um mecanismo estático para emissão de tokens contra um fee financeiro direto, antes de o projeto se tornar operacional. Os tokens seriam criados apenas uma vez, antes do lançamento do projeto, e emitidos para os investidores. Em tal configuração, uma certa parte da oferta de tokens, ou mesmo toda a oferta de tokens, é emitida antes do lançamento de um projeto, em muitos casos, mesmo antes de qualquer código ser escrito.

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

A primeira venda de tokens foi realizada em 2013, quando o projeto Mastercoin (renomeada OMNI em 2015) emitiu novos tokens Mastercoin cunhados contra o pagamento de tokens bitcoin. A venda aconteceu inteiramente P2P, levantando cerca de 500.000 USD de BTC para o projeto Mastercoin. O sucesso desta campanha de angariação de fundos inspirou outros projetos que se seguiram a utilizar a Blockchain Bitcoin para fins de crowdfunding P2P. Em 2014, o projeto Ethereum realizou uma venda antecipada de tokens que durou 42 dias e angariou o equivalente a cerca de 18 milhões de dólares em BTC, quebrando todos os recordes de angariação de fundos na altura. Esse dinheiro inicial de crowdfunding foi usado para transformar o white paper Ethereum numa rede Blockchain operacional. Uma vez operacional, a rede Ethereum permitiu a criação de uma aplicação descentralizada para qualquer tipo de troca de valores P2P, usando um contrato inteligente com apenas algumas linhas de código. Esta funcionalidade de contrato inteligente tornou-se mais tarde popular entre outros programadores e empreendedores que procuravam angariar fundos para os seus projetos. Os contratos inteligentes Ethereum simplificaram o processo de emissão e negociação de tokens recém-emitidos por outros tokens, provocando assim uma série de vendas antecipadas de tokens que quebraram recordes, realizadas em 2016 e 2017.

“TheDAO” foi um exemplo de uma das primeiras vendas antecipadas de tokens realizadas na Blockchain Ethereum. Resultando na maior venda de tokens no seu tempo, TheDAO recolheu o equivalente a 150 milhões de dólares em Ether no período de quatro semanas. A todos os que estavam dispostos a investir foi garantida uma parte proporcional das receitas futuras desse fundo de investimento descentralizado. No entanto, a experiência TheDAO terminou prematuramente com uma drenagem espetacular e altamente controversa de fundos, e num subsequente hard fork da rede Ethereum. O escopo do sucesso de crowdfunding, aliado aos dramáticos eventos e ao controverso hard fork, trouxe muita atenção a este novo tipo de veículo de angariação de fundos na grande média internacional e inspirou muitos outros projetos de angariação de fundos com uma venda antecipada de tokens. No boom das ICOs de 2016 a 2017, mais de 800 vendas de tokens foram realizadas, arrecadando um total de cerca de 20 biliões de dólares. Muitos deles estavam sobre-subscritos, o que significa que provavelmente muito mais dinheiro poderia ter sido arrecadado.

A maior parte das anteriores vendas antecipadas de tokens tinham sido promovidas por engenheiros experientes na investigação e desenvolvimento de protocolos alternativos de Blockchain. À medida que as vendas de tokens se vieram a tornar conhecidas de um público mais amplo, elas tornaram-se também um veículo de angariação de fundos para qualquer tipo de projeto, muitos dos quais nem sequer relacionados com a Blockchain ou com a Web3. Muitas dessas vendas mais recentes foram lançadas sem qualquer plano de negócios sério, apenas vendendo uma simples ideia, sem qualquer prova de especialização ou desenvolvimento. Muitas das vezes, o papel e a função do token não era clara, dando a impressão de que um token foi emitido apenas para fins de angariação de fundos com base numa simples promessa de marketing. Especialmente no bull market de 2016 e 2017, os white papers lançavam chavões de marketing, sem especificações técnicas e económicas de como um objetivo deveria ser alcançado, e qual seria a função exata do token. Na melhor das hipóteses, eles traçariam algumas especificações do projeto tais como um cronograma, orçamento, distribuição específica do token, oferta do token e a promessa de entregar uma peça de software numa data futura.

Após dois anos expansionistas e um boom de vendas de tokens, o sentimento do mercado começou a mudar em 2018. A maioria dos tokens acabou por ter uma valorização muito inferior ao total do dinheiro arrecadado, muitas das vezes apenas em algumas semanas ou meses após o sucesso da angariação de fundos. A determinada altura, muitos dos tokens só tinham valor se os investidores pudessem entrar antecipadamente e comprar com desconto, com o intuito de vender logo após o fim da ICO e a um preço mais alto, esperando que alguém comprasse seus tokens por mais do que eles pagaram, o que muitas vezes se verificava. Nas finanças e na economia, este fenómeno é referido como “Greater Fool Theory” (teoria do maior tolo). As chamadas táticas de “Pump-And-Dump” proliferaram, onde grupos coordenados manipulavam os preços em tokens ilíquidos, na sua maioria. Aplicando uma ação de compra coordenada, a procura artificial pelo token faz com que os preços subam rapidamente, para fazê-la aparecer como a nova estrela em ascensão para os mais desatentos. Como eles estavam a tentar lucrar com esse aumento repentino de preços, os membros do grupo venderiam rapidamente os seus tokens antes que os preços caíssem. Embora tais esquemas sejam ilegais na maioria das jurisdições, a instauração de processos judiciais era difícil, pois as identidades eram mais fáceis de ofuscar, pelo menos naquela época.

 

 

Apenas um terço dos tokens disponibilizados em 2017 foram listados em cada Exchange. A menos que um token seja listado numa Exchange, dificilmente terá valor de mercado, pois o investimento no token será difícil de liquidar. A listagem de tokens numa Exchange tornou-se assim um obstáculo para muitos projetos de venda de tokens, uma vez que as Exchanges tiveram dificuldade em manter as devidas diligências nas aplicações de potenciais novos tokens que desejavam ser listados. Como resultado, os fees de listagem tornaram-se competitivamente altos. Como as Exchanges não tendem a revelar os seus fees, só se pode confiar nas informações fornecidas por indivíduos, que revelaram que os fees de listagem variavam de 6.000 EUR a 2,5 milhões de EUR.

O número esmagador de vendas de tokens combinado com o aumento de projetos fracassados e esquemas intencionais tornou os investidores individuais mais críticos. O nível de escrutínio aumentou com o tempo, especialmente com a entrada de investidores institucionais no mercado criptográfico. As vendas de tokens passaram subsequentemente de vendas públicas para uma pré-venda de tokens limitada a um pequeno número de investidores abastados antes do lançamento de uma venda pública. Com o passar do tempo, o aumento das pré-vendas privadas superou o processo de venda pública.

À medida que os investidores se tornaram mais críticos e os reguladores começaram a ser mais vigilantes, os preços dos tokens foram diminuindo. De acordo com algumas estatísticas, mais de 70% dos projetos acabaram por ser esquemas intencionais ou não intencionais que não podiam ou não iriam alocar os fundos recebidos, como prometido. Um total de 7 por cento falhou ou foi abandonado antes de ser comercializado. Apenas 15% dos projetos foram listados publicamente. Em 2017, das mais de setecentas vendas de tokens, mais de 15% delas falharam no financiamento, 40% conseguiram financiamento mas depois falharam e outras 14% conseguiram financiamento mas lentamente desapareceram na obscuridade. Apesar do sucesso na angariação de fundos, muitos projetos não estão a gerar quaisquer resultados económicos, com um ROI negativo para os investidores de tokens. Embora no final de 2017 muitos tokens estarem com um preço exagerado, o mercado parece ter-se livrado de muitos projetos não viáveis.

Independentemente dos sentimentos atuais do mercado, as vendas de tokens tornaram-se um veículo popular de angariação de fundos e investimento. Estima-se que, em 2016, as vendas tenham arrecadado mais de 600 milhões de dólares. Os números de 2017 são estimados em cerca de 7 biliões de dólares. Para 2018, as estimativas variam de 13 biliões a 25 biliões, com algumas vendas isoladas a levantar mais de um bilião, como o Telegram (1,7 biliões de dólares)[1] ou a EOS (4,1 biliões de dólares),[2] a maioria baseada numa simples promessa e muitas vezes sem nenhum produto.[3] Comparando estes dados com as formas tradicionais de angariação de fundos, podemos ver que o volume global de crowdfunding em 2015 foi de cerca de 34 mil milhões de USD e prevê-se que cresça para 100 mil milhões de USD até 2025. O financiamento global de VC também está em ascensão, com mais de 250 biliões por ano.

À medida que os mercados se consolidavam e os reguladores recuperavam o tempo perdido, as vendas de tokens começaram a diferenciar entre os tipos de tokens que emitiam. As ofertas de tokens de títulos (STO – Security Token Offering) são ofertas que emitem tokens classificados como títulos. Os tokens de títulos são uma nova e interessante classe de tokens que oferecem uma lógica de negócio integrada e em conformidade com os requisitos regulamentares, tais como Know Your Customer (KYC) e Anti-Money Laundering (AML). A capacidade de fracionar facilmente a propriedade de um token de títulos permite novos níveis de investimentos fracionários em segurança, o que permitirá novos e mais personalizados tipos de ativos e derivados. Qualquer investidor de retalho pode deter uma carteira de investimentos de qualidade, que até agora só era acessível a empresas de private equity. Órgãos reguladores de diversos países já fizeram declarações ou aprovaram regulamentações, e muitos outros países estão a segui-los. Além disso, assistimos ao surgimento de uma gama de prestadores de serviços especializados em tokens de títulos, desde advogados a consultores de investimento, seguradoras e serviços de custódia. A regulamentação explícita dos tokens de títulos pode proporcionar mais certeza não apenas aos investidores (proteção ao investidor), mas também aos empresários, que por muito tempo tiveram que lidar com contas bancárias congeladas e receio de litígios, devido à incerteza de se o seu projeto ou token violou ou não algum tipo de regulamentação.

 

 

[1] A Telegram cancelou a venda pública do seu token depois de angariar mais de 1,7 mil milhões de USD numa pré-venda privada, o que normalmente permite aos VCs e aos grandes investidores comprar tokens a preços mais baixos. Não está claro se eles já levantaram o suficiente ou se questões regulatórias os forçaram a abandonar uma venda pública. Os relatórios afirmam que menos de 200 investidores financiaram a soma total.

[2] A venda dos tokens EOS durou um ano inteiro (junho 2017 a junho 2018). A sua mainnet subsequente teve alguns problemas no lançamento, e não pôde entrar em funcionamento durante pelo menos duas semanas, sendo que os problemas voltaram a surgir mais tarde.

[3] As estatísticas variam devido à falta de padrões de informação e ao facto de uma porção crescente de tokens ser oferecida numa pré-venda a um número selecionado de investidores muitas vezes não revelados.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Nos primeiros tempos das vendas de tokens, devido à falta de regulamentação explícita, muitos dos desenvolvedores assumiram que tinham total liberdade sobre como conduzir essas vendas de tokens. Diferentes abordagens foram experimentadas. O fator mais distintivo era a curva de preço do token ao longo das diferentes etapas da venda: (i) aumento de preço; (ii) diminuição de preço; (iii) preço fixo; e (iv) preço indeterminado. As vendas de tokens podem ser emitidas a um preço fixo no decorrer da duração do processo de venda. A taxa de câmbio também pode aumentar ao longo da duração da venda, de modo a que os investidores da fase inicial obtenham um preço melhor (desconto de risco) do que os investidores da fase posterior. Outras opções incluem “leilões holandeses”, onde a venda começa com o preço mais alto por token, e diminui com o tempo. Além disso, uma venda de tokens pode emitir uma quantidade fixa de tokens, ou uma quantidade ilimitada de tokens. A venda de tokens pode ser realizada de forma a que os tokens sejam distribuídos como uma percentagem do total de fundos arrecadados. O projeto EOS, por exemplo, vendeu partes iguais da sua oferta total de tokens por dia, e o dinheiro total investido por dia decidiu a alocação dos investidores da parte do token desse dia. O EOS também foi um dos poucos projetos que retirou fundos investidos antes do fim da venda de tokens, o que levantou preocupações sobre se eles reinvestiram fundos previamente retirados com vista a minimizar a venda de tokens a pessoas de fora.

Após o final de uma venda de tokens, as Exchanges podem começar a listar os tokens, permitindo assim que outras pessoas os negoceiem a um preço de mercado. Para evitar a manipulação de mercado, os projetos podem optar por estabelecer períodos de congelamento ou cool-off. Em alguns casos, pode ser um período de cool-off em que os tokens são congelados, ou ocultados, o que significa que os investidores não estão autorizados a transferir os seus tokens por um determinado período de tempo. Os períodos de reflexão são geralmente aplicados aos grandes detentores de tokens (“whales” ou baleias) que haviam comprado com desconto de modo a evitar que eles façam o “dump” dos seus tokens; em tal caso, o preço de mercado cairia.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Muitos dos primeiros fundadores dos projetos que conseguiram angariar fundos através de vendas de tokens foram engenheiros, não empresários ou gestores de ativos. Essa falta de escrutínio resultou numa alta taxa de perda dos fundos arrecadados numa venda. Muitos dos fundos foram angariados em bitcoin ou ether, que estão sujeitos a flutuação de preços. Garantir o valor desses fundos angariados através de uma gestão adequada da carteira é o trabalho de um gestor de ativos, não de um engenheiro de Blockchain, sendo que muitos projetos falharam, ou quase entraram em falência, simplesmente por causa disso. O projeto Ethereum, por exemplo, conseguiu angariar 18 milhões de USD. No entanto, como resultado de uma queda de preços no BTC nas semanas seguintes à sua venda de tokens (de 600 USD para 200 USD), os 18 milhões de USD caíram para 6 milhões. O projeto de desenvolvimento Ethereum Classic (ETCDEV) teve problemas semelhantes quando seu preço de token despencou, deixando-os sem financiamento. Steemit é outro projeto que teve de fazer cortes à sua equipe devido à perda de valor dos tokens.

Do lado dos investidores, os detentores desses tokens recém-emitidos muitas das vezes viram-se impedidos de negociar os seus tokens devido à falta de liquidez e profundidade do mercado. Quantidades relativamente pequenas de tokens negociados poderiam levar a consideráveis volatilidades de preços. Muitos detentores de tokens não tinham assim outra escolha senão manter os seus tokens, às vezes por um período de tempo consideravelmente longo, pois qualquer venda menor poderia causar queda de preços.

Com vista a um mercado de vendas de tokens mais maduro e transparente e que ofereça proteção ao investidor, o mercado precisará de procedimentos mais padronizados e melhor prestação de contas. Além disso, estão a ser propostos modelos de token contínuo e liquid pledging como abordagens mais inovadoras. Os “modelos de token contínuo” tentam gerar financiamento a longo prazo através da emissão e venda contínua de tokens. Em vez de ter uma rodada única de financiamento, muitas vezes arbitrariamente alta, onde os tokens são cunhadas apenas uma vez e nunca mais, a venda contínua de tokens permite um fluxo de caixa contínuo, reduzindo o risco tanto para empresários como para investidores. O “Liquid Pledging” foi introduzido pelo projeto Giveth e aborda os problemas de transparência da angariação de fundos tradicional e do trabalho beneficente. Ele permite tanto a supervisão quanto, muitas vezes, até mesmo a última palavra sobre como os fundos são utilizados, possibilitada pelos dados Blockchain fornecidos em tempo real.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

À medida que novos mecanismos de venda de tokens e prestadores de serviços terceiros entram no mercado, as Exchanges de tokens começaram a oferecer as suas plataformas para fins de captação de recursos. As ofertas iniciais de Exchanges (IEO – Initial Exchange Offerings) são serviços intermediários em que os emissores de tokens podem angariar fundos oferecendo o seu token numa Exchange, ao invés de oferecer os tokens diretamente no seu website. A Exchange de tokens fornece a infraestrutura, incluindo o processo KYC, e supervisiona a venda dos tokens. Os emissores de tokens enviam os tokens para a Exchange, que depois os vende aos investidores em troca de outros tokens ou dinheiro fiat. Os emissores de tokens podem reduzir as despesas de organização e a burocracia relacionada com o registo de uma venda de tokens junto das autoridades reguladoras e alavancar a base existente de utilizadores da Exchange, reduzindo os esforços de marketing. Semelhante às ICOs ou IEOs, os parâmetros de venda de tokens podem variar (preço, tipo de distribuição, quantidade de tokens emitidos). As IEOs oferecem uma maneira mais conveniente de conduzir uma venda de tokens, ao mesmo tempo que listam automaticamente o token para negociação futura nessa Exchange. Isso reduz o risco da possibilidade de os tokens poderem nunca vir a ser listados.

As ofertas iniciais de Exchange oferecem também mais flexibilidade aos investidores, uma vez que eles não são forçados a pagar com um token em particular, podendo potencialmente pagar com qualquer um dos tokens que eles já tenham depositado nessa Exchange. As IEOs mitigam o risco dos investidores entrarem numa “guerra do gás” e preocuparem-se com os fees de transação.[1] Os investidores evitam também passar por um processo de identificação em separado, se já estiverem registados na Exchange. Como as Exchanges têm uma reputação a manter, pode-se esperar que façam auditorias ao emissor, realizem análises técnicas e avaliem o potencial de um token, reduzindo a possibilidade dos oportunistas venderem os seus tokens, proporcionando assim um certo nível de proteção ao investidor. As Exchanges podem, por este meio, introduzir a padronização que o setor necessita. As Exchanges, por outro lado, beneficiam da realização de IEOs como uma fonte adicional de receita. Elas podem atrair novos utilizadores, que se inscrevem na Exchange a fim de participar de um determinado token, podendo por essa via tornarem-se utilizadores de longo prazo. Contudo, enquanto as Exchanges de tokens não forem descentralizadas, as IEOs também erradicam a natureza P2P das vendas iniciais de tokens.

[1] Na Ethereum, as transações podem variar desde simples “enviar dinheiro” até complexas interações de contratos inteligentes. Para refletir a diferença, as transações consomem gás – uma medida de etapas computacionais. Os utilizadores não podem mudar quantas etapas computacionais são necessárias para uma ação, mas eles são capazes de decidir quanto estão dispostos a gastar por essas etapas computacionais. Ao pagar um preço mais alto ou mais baixo por etapa computacional, eles podem ajudar os mineradores a tomar uma decisão sobre a inclusão da transação no próximo bloco. Num cenário de Guerra do Gás, vários utilizadores competem por uma vaga no próximo bloco. Especialmente durante as ICOs, ser incluído ou não no próximo bloco pode fazer a diferença em ser bem sucedido num leilão. Durante os períodos de pico, os utilizadores pagaram muitos múltiplos de taxas médias de transação, efetivamente superando uns aos outros para que os mineradores incluam a sua transação o mais rápido possível.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os ativos tokenizados permitem a criação de uma representação digital de qualquer ativo físico ou títulos, e podem introduzir uma gama de novas possibilidades de uso que anteriormente não eram viáveis. Eles são o próximo passo na automação dos mercados de ativos e de valores mobiliários, substituindo escritórios inteiros por contratos inteligentes.

A tokenização de um ativo existente refere-se ao processo de criação de um gémeo digital tokenizado de qualquer objeto físico ou ativo financeiro. O token aqui representa a contraparte física, coletivamente gerido por uma ledger distribuída. “Ativo tokenizado” é um termo geral que pode incluir quaisquer ativos, como commodities, artes, imóveis ou títulos de valores mobiliários. “Tokens de títulos de valores mobiliários”, ou “Security Tokens“, são um tipo específico de ativos tokenizados que são classificados como títulos mobiliários sob as regulamentações do mercado financeiro. No entanto, a interpretação do que constitui um título de valor mobiliário está sujeita à legislação local.

De uma perspetiva jurídica, a tokenização (atribuição de direitos) de ativos físicos e outros direitos (virtuais) parece importante. Ferramentas que buscam representar ativos virtuais (como certificados em papel e outros certificados digitais) provavelmente serão em breve substituídas por tokens; para ativos físicos, a posse provavelmente permanecerá o vínculo mais importante. Dependendo do ambiente regulatório e da forma como o contrato inteligente é configurado, os ativos tokenizados podem ser elegíveis para negociação global. Um investidor na França poderia facilmente comprar equity tokens de um restaurante no Canadá com alguns cliques. Um investidor no México poderia financiar uma construção de apartamentos na Índia. A abertura para os mercados globais aumenta ainda mais a liquidez e fornece novas oportunidades tanto para empreendedores como para investidores. Esta tendência pode tornar viável a compra de ações em países estrangeiros que eram anteriormente muito mais difíceis de obter.

Qualquer bem físico, ou parte de uma PME pode ser tokenizado numa fração do que ele custaria no mundo cliente-servidor, e dividido em tokens representativos, que poderiam ser negociados num mercado aberto. Para tokenizar um ativo real como um apartamento, é gerado um token com um contrato inteligente e um valor do ativo real é associado a esse token. O direito de propriedade de tal bem e a sua correspondente representação digital podem ser divididos em partes e vendidos a vários coproprietários. Mesmo que um token represente um bem físico que não seja divisível, como uma obra de arte ou um bem imobiliário, o token em si é divisível. Os mercados de ativos, tais como obras de arte ou bens imobiliários, que têm normalmente elevados valores de aquisição, podem ser tokenizados e fracionados, gerando potencialmente novos casos de utilização que antes não eram viáveis. Em vez de investir milhões de euros numa obra de arte, pode-se agora comprar uma fração de um quadro. Isto permite uma maior profundidade de mercado e liquidez. 

A tokenização de ativos do mundo real poderia levar a uma capitalização de mercado de triliões de euros, mas necessita de alguns pré-requisitos: (i) Exchanges online especializadas em tokens de ativos, (ii) custódia confiável de carteiras que possam gerir múltiplos ativos e, idealmente, também conceder auto-custódia aos detentores dos tokens, e (iii) um ambiente regulador bem definido para diferentes tipos de ativos tokenizados.

Os riscos e ramificações de ativos tokenizados são mais difíceis de prever do que os security tokens, e representam um desafio tanto para investidores e empresários, como para os reguladores. Os security tokens podem ser comparados aos primeiros dias da Web, quando os editores começaram a publicar o seu conteúdo online como se fosse um papel impresso. No início, a Internet apenas proporcionava um novo canal de distribuição, mas não alterava o tipo e o formato do conteúdo. Levou anos até que as primeiras secções de comentários fossem adicionadas aos websites, onde os leitores podiam discutir interativamente os tópicos. Também demorou algum tempo até que os editores compreendessem que podiam acrescentar novos tipos de conteúdo que normalmente não chegariam ao jornal ou à revista. Somente com o aparecimento das redes sociais é que a indústria editorial foi verdadeiramente transformada, pela introdução de canais de distribuição mais fragmentados e dinâmicos, onde qualquer indivíduo se podia tornar um “influenciador”. Ativos tokenizados são para os mercados financeiros o que as redes sociais foram para a indústria editorial. São muito mais propensos a revolucionar a nossa economia, e os tokens de títulos são a porta de entrada para lá chegar.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Security Tokens, ou tokens de valores mobiliários, proporcionam uma nova forma de representação, gestão e distribuição dos títulos existentes. O pagamento de dividendos poderia ser realizado com um contrato inteligente e em tempo real, o que constitui uma atualização para sistemas de liquidação financeira de última geração. Do ponto de vista do regulador, estes tokens são títulos tradicionais que são simplesmente representados e geridos por uma nova tecnologia. Não representam um novo produto, e por isso são bastante fáceis de regular. Autoridades de conduta financeira e entidades reguladoras similares em todo o mundo concluíram que qualquer token que possa ser considerado como valor mobiliário está sujeito ao escrutínio das entidades reguladoras em todo o mundo, como a Securities and Exchange Commission (EUA), FMA (Áustria), Monetary Authority of Singapore (MAS), BaFin (Alemanha), e FCA – Financial Conduct Authority (Reino Unido), apenas para citar alguns exemplos.

Não existe um entendimento global comum do que constitui um security token; a regulamentação difere de país para país. Em algumas jurisdições, o termo “security token” aplica-se a qualquer token que represente um ativo reconhecido ou um conceito de investimento, e outras jurisdições têm uma definição mais restrita do que constitui um título. A Securities and Exchange Commission (SEC) nos EUA, por exemplo, define um token como um valor mobiliário se alguém investir dinheiro com a ideia de lucrar com os esforços de outra pessoa. Mais especificamente, um token seria considerado um valor mobiliário se existir: (i) um investimento de dinheiro; (ii) uma expectativa de lucros; (iii) que o dinheiro seja detido por uma empresa comum; e (iv) que os lucros sejam o resultado de esforços de terceiros. Em contraste, a definição europeia de valores mobiliários inclui ativos normalizados que são transferíveis e negociáveis nos mercados de capitais, não têm qualquer instrumento de pagamento, e são comparáveis a instrumentos de capital ou de dívida.

No sistema financeiro atual, os títulos e outros produtos financeiros levam algum tempo a ser liquidados. Apesar do facto de os processos terem melhorado com o advento dos computadores e depois com a Internet, a liquidação ainda está longe de ser conduzida em tempo real. As transações podem demorar um mínimo de dois dias úteis para serem liquidadas. Embora já existam hoje mercados de operação a funcionar vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, estes raramente são P2P. Os tokens de valores mobiliários podem facilitar processos de liquidação sem atritos, sem sacrificar a proteção legal[1]. O contrato inteligente substitui o intermediário e executa o processo de liquidação entre vendedores e compradores, minimizando as taxas de corretagem. Mercados totalmente operacionais 24/7 poderiam reduzir o tempo de liquidação para alguns minutos ou menos.

A “compliance” (regras de conformidade) vem embutida com o contrato inteligente. O código de autoexecução é uma resposta eficiente a um aspeto complexo da negociação de títulos, onde a regulamentação pode variar dependendo do tipo de ativo ou tipo de investidor, tendo em conta que todos os interessados – o comprador, o vendedor e o emissor – podem estar sujeitos a jurisdição variável. Atualmente, um processo complexo de tratamento de documentos é realizado por uma série de livros-razão separados, onde os dados são geridos por trás dos jardins murados dos servidores de cada parte envolvida. Este pesadelo de gestão de documentos cria muitas ineficiências e perda de tempo. A natureza programável dos tokens torna também mais barato e mais fácil formalizar condições especiais, que poderiam introduzir tipos de ativos mais personalizados que antes não seriam viáveis. No entanto, qualquer sistema de “trading” de tokens de valor mobiliário precisa incorporar uma miríade de contratos legais. A implementação de tokens como valor mobiliário é uma questão tecno-legal complexa e depende dos efeitos de rede. Os prestadores de serviços terceirizados começaram a fornecer normas para os tokens, concebidas para permitir a emissão transparente de ativos tokenizados e tokens de valores mobiliários, incluindo processos para requisitos KYC e AML.

Cada vez mais atores no mercado estão a anunciar serviços em torno de tokens de valores mobiliários. Algumas empresas já estabelecidas anunciaram plataformas de negociação especializadas, incluindo os fundadores da NYSE (Bolsa de Valores de Nova York) que estão a investir em startups relevantes. A Swiss Exchange está também a planear construir uma bolsa regulamentada para os tokens de valores mobiliários. Outros atores ativos neste campo: “Bakk”, “Securitize”, ”OTCXN”, “tZERO”, “Polymath”, “Neufund”, “Binance” em parceria com a Malta Stock Exchange, “Cezex”, Gibraltar Blockchain Exchange, “Templum”, “Coinbase” e a London Stock Exchange (Bancor).

[1] “Embora pareça haver pelo menos um amplo consenso sobre a aplicabilidade de regimes regulamentares entre os reguladores, a situação é diferente no que diz respeito ao direito civil de muitos países e, portanto, à “proteção” dos detentores de tokens. A qualificação em direito regulatório parece mais fácil, porque visa abordar certos riscos (proteção dos mercados e investidores) e, portanto, permite uma abordagem de “substância sobre forma”. No direito civil, a proteção jurídica dos valores mobiliários (como a aquisição de boa-fé) está tipicamente ligada quer a certificados em papel quer a entradas em livros por intermediários regulados. Serão necessárias alterações legislativas para alcançar a segurança jurídica (ver consultas no Liechtenstein, Suíça, Alemanha)”.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os imóveis são uma das maiores classes de ativos a nível mundial em termos de capitalização de mercado, no entanto, a propriedade imobiliária não está aberta a todos os membros da sociedade. Muitas famílias de baixo rendimento podem passar uma vida sem se poderem dar ao luxo de comprar um imóvel. Para receberem um empréstimo, os compradores devem ter uma pontuação de crédito positiva, um emprego estável e bem pago, ou uma garantia de outros ativos. Além disso, o mercado imobiliário é altamente fragmentado e centralizado. Os dados são geridos por uma série de terceiros como bancos, advogados, notários e registos prediais que utilizam os seus próprios dispendiosos softwares que, na sua maioria, não são interoperáveis. Os contratos inteligentes têm o potencial de facilitar a gestão de direitos na indústria imobiliária, incluindo todo o processo de liquidação. Na altura em que a propriedade imobiliária esteja tokenizada, pode ser facilmente registada e gerida numa infraestrutura pública e comercializada P2P, se estiver em conformidade com a regulamentação. Os hashes dos dados de cada propriedade poderiam ser registados numa ledger distribuída para fornecer um conjunto de dados partilhados universalmente sobre todas as atividades relacionadas com imóveis, tais como proprietário anterior, reparações realizadas e amenidades.

Os imóveis são um bem ilíquido, o que significa que a compra e venda do bem é um processo moroso e burocrático; a propriedade não troca de mãos rapidamente. Pesquisas mostram que a utilização de registos de propriedade baseados na Web3 poderia minimizar a burocracia e reduzir o atrito do mercado e os custos consideráveis envolvidos na transferência de propriedade. Os tokens poderiam ser facilmente fracionados, o que significa que os proprietários imobiliários poderiam vender partes fracionadas dos seus apartamentos. Embora a venda de partes de uma propriedade não seja um conceito novo, a tokenização de imóveis seria o próximo passo no processo de automatização, tornando mais eficiente a emissão e venda destes bens a uma fração dos custos que eram antes necessários.

Os tokens podem ser emitidos para imóveis existentes ou para um projeto imobiliário em desenvolvimento. Os proprietários privados poderiam emitir tokens fracionários de um apartamento que quisessem comprar, o que lhes permitiria angariar fundos sem necessidade de passar por um banco ou contrair um empréstimo privado. Os detentores dos tokens seriam coinvestidores e poderiam receber uma renda fracionária na proporção da quantidade de participações que detêm. As pessoas que anteriormente eram excluídas de tais investimentos por razões económicas poderiam agora investir apenas numa fração de uma unidade inteira, o que tornaria o mercado mais inclusivo para aqueles que têm menos meios económicos. A cobrança das rendas é administrada pelo contrato inteligente e a propriedade é mais facilmente transferida. Se, por exemplo, outra pessoa comprar 5% do valor tokenizado do seu apartamento, a renda proporcional poderia ser paga automaticamente numa base mensal pelo contrato inteligente. No caso de uma venda do apartamento numa data futura, os detentores dos tokens fracionários deste apartamento poderiam receber o seu dinheiro de volta, provavelmente com lucro, que também poderia ser automaticamente gerido e executado pelo contrato inteligente.

Com tokens fracionários, é importante distinguir o tipo de direitos que são concedidos com o token adquirido: propriedade (como investimento, posso vender e rentabilizar a qualquer momento) e direito de acesso (posso aceder a essa propriedade). Os direitos de propriedade também precisam ser desconectados da gestão desse bem real. As regras de governança do token terão de regular quem decide sobre a venda do apartamento. Na maioria dos casos, só seria viável conceder direitos de participação nos lucros, mas não direitos de voto. No entanto, teria de haver um regulamento para especificar os direitos dos detentores do token, no caso do emissor do token não pagar a renda ao detentor do token fracionado. Os pormenores de tais casos comerciais teriam de cumprir as normas regulamentares e ter uma forma significativa de serem executados. Existe uma variedade de opções legais estabelecidas para soluções de conflito em situações de propriedade fracionada, como os chamados direitos[1] de “drag along” e “tag along” ou “leilões holandeses”[2], que poderiam todos ser modelados num contrato inteligente para chegar a uma solução adequada ao objetivo de uma dada situação.

O processo atual de contrair um empréstimo para a aquisição de casa própria envolve muita supervisão regulamentar e diligência por parte dos bancos para garantir que a pessoa que contrai o empréstimo também possa pagar o empréstimo, incluindo os juros. Se não puderem, o banco está coregistado nos títulos de propriedade. Se o proprietário não conseguir pagar o empréstimo, o banco pode reivindicar a propriedade, vendê-la, e liquidar o apartamento no mercado para recuperar o crédito que concedeu. No caso de propriedade fracionada, como será gerido um tal caso? Por terceiros de confiança e liquidatários? Os processos de manutenção também precisam ser cobertos pelo contrato inteligente; caso contrário, seria um pesadelo regulamentar tentar forçar a litigação contra centenas, senão milhares, de proprietários de um edifício de escritórios que não se ocupam da manutenção.

Embora a tokenização de imóveis tenha muito potencial, este caso de utilização vem com muitos desafios práticos, a maioria dos quais diz respeito a questões legais e regulamentares, que variam de país para país, ou de Estado para Estado. Um pré-requisito para a tokenização imobiliária seria que o processo legal do mercado imobiliário se tornasse compatível com a Web3, desde o processo de registo predial até ao ambiente regulador geral que aceita processos com contratos inteligentes. Em alguns países, a propriedade da terra mal é rastreada; na maioria dos países, o processo ainda é predominantemente baseado em papel, exigindo uma miríade de intermediários. Todos os participantes envolvidos no mercado imobiliário, desde promotores e corretores a bancos, fundos imobiliários e gestores de instalações, também precisam ser compatíveis com o direito de distribuição antes que um caso de utilização se torne viável.

A tokenização e a fracionalização de imóveis poderia também ter ramificações potencialmente negativas que exigiriam uma supervisão regulamentar. Há muito a aprender com o colapso do mercado imobiliário nos Estados Unidos que levou à crise financeira de 2008[3]. Quando muitas pessoas não compreendem o que estão a comprar, a propriedade fracionada de imóveis pode tornar-se um jogo de investimento perigoso e resultar no mesmo “pensamento mágico” por parte de investidores desinformados que têm pouca compreensão do grande quadro da dinâmica do mercado ao tomarem decisões de investimento.

Muitos países estão já a estudar o registo de títulos de propriedade em algum tipo de ledger distribuída, e muitos mais os estão a seguir. Um ecossistema em rápido crescimento de prestadores de serviços que oferecem soluções de propriedade fracionada e outros serviços imobiliários tokenizados está em evolução, tais como “Atlant“, “IHT Real Estate Protocol“, “LATOKEN“, “Max Property Group“, “Meridio“, “BitRent“, “Etherty“, “Caviar“, “Propy“, “PropertyShare“, “Rentberry“, “Treehouse” ou “Trust“.

[1]  Num acordo de acionistas, uma cláusula de “drag along” exige que os acionistas minoritários vendam as suas ações, enquanto a cláusula de “tag along” exige que os acionistas maioritários permitam que a minoria participe numa venda.

[2]  Num leilão holandês, os investidores apostam pelo montante que estão dispostos a pagar por um token. O preço do token é determinado após todas as ofertas terem sido realizadas, para determinar o preço mais elevado pelo qual a oferta total pode ser vendida.

[3]  “A bolha imobiliária anterior à crise foi financiada com títulos garantidos por hipotecas (MBS) e obrigações de dívida colateralizadas (CDO), que inicialmente ofereciam taxas de juro mais elevadas (i.e. melhores rendimentos) do que os títulos do Estado, juntamente com notações de risco atrativas das agências de classificação”. O colapso da bolha imobiliária levou à desvalorização dos títulos relacionados com imóveis, que na sua maioria não estavam regulamentados. https://en.wikipedia.org/wiki/Subprime_mortgage_crisis

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Do ponto de vista do investimento, as obras artes são uma classe de ativos que faz parte das carteiras de investimento de muitos indivíduos de rendimentos elevados. No entanto, os investidores com menos meios económicos não têm acesso a este tipo de classe de ativos, uma vez que os objetos de investimento mais atrativos são muito caros e os preços são ditados por casas de leilões e galerias que normalmente existem em número reduzido, o que resulta numa baixa liquidez do mercado. Para complicar ainda mais a questão, a manutenção de peças de arte é dispendiosa e realizada em bunkers, e não nas salas de estar das pessoas que investiram nelas. Além disso, a compra e venda das obras de arte é atualmente acompanhada por um pesado processo de documentação, para garantir a autenticidade e a proveniência de uma obra de arte, o que é um pré-requisito para garantir valor. O sistema atual depende de intermediários de confiança que gerem uma manta de retalhos de bases de dados ao longo da cadeia de fornecimento de arte, gerindo os certificados digitais que garantem o valor. O mesmo se aplica à indústria musical, à indústria cinematográfica e à indústria editorial quando se trata de liquidação de direitos de autor dos artistas por parte das editoras, estúdios de gravação, estúdios cinematográficos, ou serviços de streaming online. O acordo de royalties acontece com um atraso considerável de vários meses a, por vezes, anos. O processo é ineficiente e altamente intransparente. A tokenização de obras de arte e do mercado de entretenimento poderia, potencialmente, resolver muitas das ineficiências dos sistemas atuais, desde a propriedade fracionada, proveniência, gestão de direitos digitais e liquidação, até ao crowdfunding. Os tokens poderiam também permitir novas obras de arte derivadas. Exemplos de projetos que já estão envolvidos na tokenização da arte são: “Artex”, “Artory“, “Ara”, “ArtWook”, “Audius”, “BitSong”, “Blockchain Art Collective”, “Blockgraph”, “Braid”, “Custos”, “Comcast”, “Curio”, “Cards”, “Dada”, “nyc“, “Feedbands”, “Filmchain”, “Livepeer”, “Looklateral”, “Maecenas”, “Musicoin”, “Plantoid”, “re8tor”, “RNDR”, “Snark.art”, “SOUNDACC”, “Tatatu”, “The Art Token”, “Ujo”, “Verisart”, “VooGlue”, “Vezt”, “Viberate”, “Vevue”e “White Rabbit”.

Propriedade fracionária: os indivíduos de menor rendimento, que normalmente seriam excluídos desta oportunidade de investimento, poderiam comprar uma fração de uma obra de arte cara. Isto poderia levar a um aumento da procura de investimentos em arte, aumentando potencialmente os preços globais da arte e a produção de novos tipos de arte, democratizando e diversificando o mercado. A principal questão que se coloca neste contexto é como pode ser gerida a propriedade coletiva de uma obra de arte. A obra de arte em si poderia, por exemplo, ser mantida por um depositário que tivesse a experiência de manter uma coleção de arte, cujo custo seria suportado por todos os detentores de tokens da peça. Os pagamentos seriam geridos e executados através do contrato inteligente. Um exemplo precoce é a pintura de Andy Warhol, “14 Pequenas Cadeiras Elétricas”, que foi tokenizada e vendida através da “Maecenas” em 2018. A pintura foi tokenizada e fracionada na rede Ethereum, os certificados de propriedade foram geridos por um contrato inteligente e tornaram-se verificáveis publicamente, e podiam assim ser negociados na plataforma Maecenas.

Proveniência: a arte tokenizada poderia abrir caminho para um mercado mais transparente, onde os potenciais investidores têm acesso a obras de arte verificadas. A atribuição de proveniência utilizando tokens geridos por uma infraestrutura pública poderia resolver os desafios dos sistemas convencionais, como a corrupção, a contrafação, e a pirataria. O sistema atual depende de intermediários de confiança que gerem uma fragmentada manta de retalhos de bancos de dados, onde estes certificados digitais são armazenados. Inversamente, os sistemas de tokens utilizariam hashes e criptografia para verificar publicamente a proveniência das obras de arte. A gestão das transferências de propriedade seria conduzida por contratos inteligentes, a custos drasticamente mais baixos, permitindo a liquidação em tempo real.

Gestão de direitos: os contratos inteligentes são instrumentos de gestão de direitos. A tokenização permite uma gestão mais transparente e desintermediada dos direitos de propriedade intelectual e a subsequente liquidação em tempo real dos direitos de autor. As obras de arte poderiam facilmente ser alugadas a uma galeria, os músicos poderiam cobrar os seus direitos de autor mais rapidamente, e a partilha geral de receitas entre fornecedores de plataformas e artistas poderia ser gerida pelo contrato inteligente em tempo real, uma vez que uma canção/filme/livro fosse transmitida ou descarregada. As taxas de royalties poderiam ser liquidadas diretamente, sem editoras, estúdios cinematográficos, ou serviços de streaming agindo como intermediários, que muitas vezes compensam os artistas e contribuintes com um atraso significativo no tempo. Os royalties poderiam ser liquidados sob a forma de tokens que são enviados ao artista em tempo real, com base no número de pessoas que viram a sua arte, assistiram ao seu filme ou ouviram a sua faixa de áudio, ou leram o seu post.

Financiamento/investimento colaborativo: os tokens também podem ser utilizados para o crowdfunding de futuros projetos artísticos, os quais os seus investidores poderiam possuir como uma fração ou como um todo. Qualquer pessoa que contribua para o financiamento de um projeto artístico poderá receber uma parte proporcional do valor tokenizado deste projeto, aceitando os termos estabelecidos no contrato inteligente. O artista poderia definir o contrato inteligente de forma a que ele mantenha uma parte da obra de arte produzida, enquanto outros detentores de tokens são livres para vender os seus tokens no mercado aberto, ou, alternativamente, fazer o saque, caso a peça seja vendida coletivamente. Em tal configuração, um artista pode receber financiamento antes da produção, mantendo ao mesmo tempo a propriedade parcial da arte. Os tokens podem também permitir às galerias pré-financiar a compra de obras de arte.

Obras de arte derivadas: o surgimento de novas obras de arte derivadas poderia ser outra aplicação da arte tokenizada. Poder-se-ia criar contratos inteligentes convolutos que dessem direitos de acesso a obras de arte derivada com a compra de uma pintura real. Poder-se-ia acrescentar características extra, tais como a ligação de um ficheiro digital à obra de arte física, assim como a integração de características de realidade aumentada no token. Por exemplo, um vídeo que documenta o processo de produção da obra de arte. Os tokens podem ligar permanentemente a obra de arte física ao seu ficheiro digital, de modo a que o ficheiro digital se torne parte da obra de arte física e aumente o seu valor. Os tokens de arte também abrem novas formas de expressão artística e criação de valor, como a gamification e podem levar à fusão de arte, realidade virtual e jogos.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

A lógica de negócio de um contrato inteligente que gere a propriedade coletiva fracionária depende, em si mesma, do caso de utilização. Um edifício de escritórios, por exemplo, poderia ser adquirido coletivamente por membros de um espaço de coworking, sendo que em tal caso a tomada de decisão poderia também ser gerida coletivamente. Os tokens concederiam direitos de voto. O espaço de coworking poderia ser tokenizado com base nos direitos de utilização, onde os membros teriam o direito de utilizar uma determinada parte do espaço. A propriedade coletiva poderia também ser útil para muitas ONG ou para os esforços grassroots[1]. Uma comunidade de vizinhos poderia comprar e operar coletivamente uma micro-rede de energia renovável, uma vez que é mais viável para um coletivo de vizinhos cobrir o custo do que para um indivíduo. O contrato inteligente enviaria receitas mensais provenientes do excesso de energia produzida e vendida a todos os membros do coletivo, na proporção das participações que possuíssem (ler mais: Parte 2 – Economia Institucional das DAO).

Uma tal configuração poderia também ser atrativa para os taxistas. Muitos motoristas não têm dinheiro para investir no seu próprio carro, e assim trabalham para uma empresa que fornece a infraestrutura, partilhando as suas receitas ou pagando uma renda fixa ao proprietário do veículo. Os tokens de propriedade coletiva fracionada permitiriam a vários taxistas comprar coletivamente um carro, em vez de o alugarem a alguém, e dividir os turnos, bem como os custos e receitas envolvidos na compra e manutenção do carro para as suas viagens. Um contrato inteligente poderia alocar uma parte das receitas de todos às despesas envolvidas.

Os tokens de propriedade fracionada coletiva poderiam, além disso, gerir os bens comuns de uma comunidade maior, e estabelecer o direito de um indivíduo aos benefícios dos bens pertencentes à comunidade. O Estado do Alasca, nos Estados Unidos, e a Noruega, já passaram aos seus residentes uma parte das suas vendas de petróleo, quer diretamente quer sob a forma de fundos de riqueza soberana. Tal processo poderia ser tokenizado para reduzir os custos de liquidação, aumentando ao mesmo tempo a transparência e a responsabilidade.

[1] Nota do tradutor: Denominação dada a um tipo de movimento social em que se enfatiza o empoderamento de grupos locais e uma hierarquia mais horizontal, em vez de uma hierarquia vertical com uma liderança forte e centralizada. Também pode ser chamado de movimento de raiz ou comunocêntrico. https://pt.wikipedia.org/wiki/Grassroots Acesso em 04/01/2021

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os tokens orientados a um propósito incentivam o comportamento individual a contribuir para um objetivo coletivo. Este objetivo coletivo pode ser um bem público ou a redução de externalidades negativas para um bem comum. Os tokens com fins específicos introduzem uma nova forma de criação de valor coletivo sem recurso aos intermediários tradicionais. Constituem uma alternativa ao sistema económico convencional, que incentiva predominantemente a criação de valor individual sob a forma de bens privados.

 

As redes Blockchain públicas podem ser descritas através de muitas metáforas: (i) ledger distribuída, (ii) máquina de estado universal, (iii) máquina de governança, (iv) máquina de contabilidade, e (v) organização autónoma descentralizada. No entanto, todas estas características derivam do facto da rede Bitcoin e ledgers distribuídas similares serem, em primeiro lugar, (vi) máquinas de incentivo. O Proof-of-Work revolucionou a criação de valor coletivo na ausência de intermediários. Introduziu um mecanismo de consenso para levar os atores da rede a gerir coletivamente um livro-razão distribuído de uma forma verdadeira, recompensando-os com tokens. A ideia de alinhar os incentivos entre uma tribo de atores anónimos introduziu um novo tipo de infraestrutura pública que é autónoma, autossustentável e resistente a ataques (ler mais: Parte 1 – Bitcoin, Blockchain e outras DLTs). Desde então, isto tem inspirado muitos projetos a desenvolver este princípio de incentivo ao comportamento com aquilo a que chamo um “token orientado a um propósito”. Com propósito, refiro-me à ideia de um objetivo coletivo, para além de maximizar o lucro pessoal. O objetivo coletivo pode ser um bem público (por exemplo, uma rede de pagamento P2P) ou a redução de externalidades negativas de um bem comum (por exemplo, a redução das emissões de CO2).

O mecanismo de consenso “Proof-of-Work” da Bitcoin introduziu um novo tipo de criação de valor coletivo que transcende a criação clássica de valor económico. O protocolo fornece um sistema operacional para um novo tipo de economia que pode transcender os Estados-Nação e organizações individuais. A natureza de código aberto do protocolo Bitcoin permitiu a qualquer pessoa aceder ao código, copiá-lo e modificá-lo, e criar a sua própria rede orientada para os seus propósitos. Redes como a Ethereum levaram a ideia de criação de valor coletivo ao nível seguinte, fornecendo uma infraestrutura pública para a criação de um token de aplicativo com apenas algumas linhas de código. Com estes tokens de aplicativos, podemos agora criar tipos completamente novos de economias com um simples contrato inteligente que funciona em cima de uma infraestrutura pública e verificável. Estes tokens são um veículo facilmente programável para modelar processos individuais de tomada de decisão num contrato inteligente. Qualquer propósito pode ser incentivado. Qualquer comportamento pode ser modelado. Exemplos de diferentes tipos de tokens com propósitos específicos são:

Incentivar o consenso sobre os “Estados” de uma rede: Numa rede de Proof-of-Work, o consenso entre os nós é alcançado incentivando os mineradores com tokens nativos da rede a utilizarem o seu poder computacional para proteger a rede. O objetivo é chegar a um consenso distribuído entre os atores não confiáveis da rede sobre o estado da rede. O mecanismo de recompensa baseia-se no pressuposto de que todos os atores da rede são potencialmente corruptos, pelo que o processo de inserir transações na Blockchain é intencionalmente dificultado e ineficiente, tornando dispendioso para os atores maliciosos atacarem a rede. As redes Bitcoin, Ethereum, e similares, fornecem um bem público semelhante ao que os governos normalmente fornecem aos seus cidadãos: redes de utilidade pública como as ferrovias, obras hidráulicas, ou redes de eletricidade. Contudo, ao contrário dos bens públicos controlados pelo Estado, as redes em Blockchain possuem manutenção, desenvolvimento e controlo distribuídos, e todos alinhados e incentivados pelo token nativo. No caso da Bitcoin, o bem público representa uma infraestrutura de pagamento P2P. No caso da Ethereum, o bem público representa uma infraestrutura de computação P2P. No entanto, o Proof-of-Work não é o único mecanismo de incentivo para alcançar um estado universal. Estão a ser pesquisados e desenvolvidos protocolos alternativos de consenso que podem ser mais rápidos ou mais eficientes em termos de recursos (ler mais: Parte 1 – Bitcoin, Blockchain e Outras Ledgers Distribuídas).

Incentivar as contribuições das redes sociais: “Steemit” é uma rede social baseada em Blockchain, concebida para incentivar a criação a curadoria de conteúdos. Qualquer utilizador pode aderir e contribuir gratuitamente, e como tal, contribuir para o bem público. O objetivo desta rede social P2P é recompensar aqueles que contribuem para o crescimento e resiliência da rede social. Steemit é uma aplicação semelhante ao Facebook ou Reddit, mas em oposição a estas, a rede é governada e mantida coletivamente. Aqueles que contribuem para a rede são recompensados por contribuírem para a infraestrutura da Blockchain subjacente (a Blockchain da Steem), ou por carregarem ou curarem conteúdo no site Steemit. O quanto alguém é pago é uma função do número de contribuições, e da popularidade das suas contribuições. Exemplos de outras redes que incentivam contribuições são E-chat”,Akasha”,Minds,” ouGolos”.

Incentivar as contribuições para uma lista: os Tokens de Curadoria de Registos (TRC) são um mecanismo criptoeconómico concebido para incentivar a curadoria coletiva de listas públicas ou feeds de conteúdos numa rede social. O objetivo coletivo é uma lista útil e de alta qualidade. Os tokens são utilizados para fornecer um incentivo económico para a curadoria da classificação da informação em tal lista. O mecanismo de um TRC visa alinhar os incentivos dos portadores de tokens a fim de produzir listas que são valiosas para os consumidores e fornecer um sinal confiável de qualidade sobre algo que um utilizador não pode observar diretamente. Cada lista tem o seu próprio token nativo.

Incentivar a redução das emissões de CO2: os tokens criptográficos emitidos por um contrato inteligente também podem ser utilizados para incentivar indivíduos e empresas a agirem de forma sustentável. Num tal cenário, indivíduos e organizações que possam provar que reduziram as emissões de CO2 podem ser recompensados com um token criado (cunhado) após tal prova. Dependendo do design do token, as recompensas de CO2 podem ser trocadas por alguns outros serviços prestados pela organização que emite estes tokens, e podem variar muito de projeto para projeto. Os tokens podem estar ligados à identidade de um utilizador (não-fungível), ou podem ser concebidos para serem negociáveis (transferíveis). Podem ser concebidos para expirar após algum tempo, ou ter uma durabilidade ilimitada. “Vienna Kultur-Token“, “Sweatcoin”, ou “Changers” incentivam andar de bicicleta, andar a pé, ou utilizar transportes públicos em vez de utilizar um carro. Outros projetos incentivam a produção ou consumo de energias renováveis tais como “Solar Coin”, “Electric Chain”, e “Sun Exchange”. Alternativamente, as pessoas poderiam ser incentivadas com um  token cada vez que provassem que utilizaram menos energia utilizando dispositivos eficientes, ou apagando as luzes, como no caso da “Energi Mine” ou “Electron“. Também poderia ser incentivado a plantar árvores (Proof-of-Tree-Planted), ou a limpar uma praia (Proof-of-Bottles-Recycled), a reduzir o desperdício de alimentos, e muito mais. Alguns exemplos disso são: “Plastic Bank“, Earth Dollar”,Bit Seeds”,Eco Coin”,Earth Token”, eRecycle To Coi“.

Os tokens orientados a um propósito oferecem uma alternativa aos sistemas económicos convencionais que incentivam predominantemente a criação de valor individual: atores privados que extraem rendimento da natureza ou da força de trabalho, para transformá-los em produtos, muitas vezes externalizando os custos para a sociedade, ao mesmo tempo que internalizam (e maximizam) os lucros privados. Contudo, este novo e coletivo fenómeno de criação de valor que a Bitcoin introduziu irá provavelmente necessitar de muita mais investigação e desenvolvimento, e de uma longa fase de tentativa e erro, antes de podermos compreender melhor o potencial de incentivar as contribuições para um bem comum. Os casos de utilização operacional ainda são limitados.

A “política monetária” dos tokens orientados a um propósito pode ser regulada por um contrato inteligente que rege a emissão e a gestão dos direitos destes tokens. Estes tokens podem ser fungíveis (negociáveis por outros tokens do mesmo tipo) ou não-fungíveis (tokens de reputação baseadas na identidade). Os tokens de CO2, por exemplo, poderiam ser concebidos para incentivar apenas a pessoa que ganhou os tokens (não transferíveis). Os tokens também poderiam vir com uma data de validade incorporada. Os tokens bitcoin e outros tokens de protocolo de Blockchain foram concebidos para serem transferíveis e, portanto, negociáveis. Os tokens podem ser programados para terem uma transferibilidade limitada, pelo que só podem ser trocadas por produtos e serviços dentro da comunidade, nunca saindo do sistema interno e sendo trocadas por moeda fiduciária, mas ainda assim úteis na economia interna de uma rede (moeda comunitária).

O estudo da economia, teoria da escolha pública, teoria dos bens públicos, e ciências comportamentais serão essenciais para uma melhor compreensão, e como resultado, também um melhor processo de design e engenharia dos tokens orientados a um propósito (ler mais: Parte 4 – Como Conceber um Sistema Token).

 

Bens Públicos e a Tragédia dos Comuns

Em economia, o termo “bens públicos” refere-se a bens que qualquer indivíduo pode utilizar sem pagar por eles (não-excludente ou sem permissão), e onde a utilização por um indivíduo não reduz a disponibilidade para outros (não rivais, ou ilimitados). Os bens públicos que satisfazem ambas as condições apenas em certa medida são referidos como bens públicos impuros. Os bens públicos podem ser fornecidos por um governo, ou estar disponíveis na natureza. Os bens públicos globais não têm restrições geográficas, e estão disponíveis a nível mundial. Exemplos disso são: o conhecimento, a Internet, e certos recursos naturais. A rede de pagamento Bitcoin poderia ser vista como uma nova forma de bem público orientado para a tecnologia, embora impura. A conservação e a manutenção da rede são coletivas e não-permissionadas. A utilização da rede é não-permissionada e não rivalizada, mas apenas enquanto não forem atingidos os limites de capacidade. Na sua forma atual, as redes públicas em Blockchain não têm uma boa escala e podem ser consideradas como rivais quando a rede fica congestionada. As redes sociais P2P e os Token de Curadoria de Registos são também bens públicos orientados para a tecnologia.

 

Os bens públicos tendem a estar sujeitos a problemas de free-riders, onde alguns indivíduos consomem um bem público sem contribuir (suficientemente) para a sua criação ou manutenção. Se um certo número de pessoas e instituições optarem pelo free-ride, o mercado não conseguirá fornecer um bem ou serviço para o qual haja necessidade. O software de código aberto é um bem público que está tipicamente sujeito a esse problema. O protocolo Bitcoin é também um bom exemplo para este problema de free-riders, uma vez que apenas alguns contribuem para o código, com pouco ou nenhum incentivo direto para o fazer, mas muitas pessoas utilizam-no. As redes sociais tokenizadas ou os tokens de curadoria de registos também enfrentam muitos problemas de free-riders que precisam ser antecipados ao conceber os mecanismos de governança do token (ler mais: Parte 4 – Steemit e Tokens de Curadoria de Registos).

Se os bens públicos ficarem sujeitos a restrições, tornam-se bens artificialmente escassos ou bens privados. Os mecanismos de exclusão podem existir sob a forma de filiação, direitos de autor, patentes, ou acesso pago. As ledgers permissionadas podem ser vistos como tais bens artificialmente escassos, onde apenas os membros da federação têm acesso à ledger distribuída e podem escrever-lhe transações (ler mais: Parte 1 – Bitcoin, Blockchain e Outras Ledgers Distribuídas).

Os bens comuns são semelhantes aos bens públicos, uma vez que não podem ser excluídos (sem autorização), mas são rivais, o que significa que o consumo de um bem por uma pessoa exclui outros de o consumir. Exemplos de bens comuns são a água e o ar, as florestas, e os recursos naturais em geral. São públicos, mas escassos, muitas vezes em graus variáveis. Se os recursos naturais forem explorados ou poluídos para além da sua capacidade sustentável, isso impede que outros os consumam. A “tragédia dos bens comuns” ocorre quando indivíduos captam recursos para o seu próprio lucro a curto prazo, ignorando a dinâmica coletiva do comportamento individual e as consequências a longo prazo para o bem comum. A “tragédia dos bens comuns” pode ser evitada com regulamentações para limitar a extração dos bens para além de um nível sustentável.

Embora os recursos haliêuticos mundiais possam ser vistos como um recurso não excludente, são finitos e estão a diminuir devido à contínua pesca em alto mar por diferentes atores privados em todo o mundo. Ledgers públicas de última geração são sempre, em algum nível, rivais, mas têm mais carácter de bem público, pelo menos atualmente. Isto pode mudar à medida que a tecnologia evoluir. Os tokens orientados a um propósito podem ser programados para manter ou restaurar um bem comum, e podem possivelmente resolver muitos problemas da tragédia dos comuns que a sociedade enfrenta atualmente. Os tokens de CO2, como descrito anteriormente, poderiam fornecer um mecanismo para “direcionar” os indivíduos a contribuírem coletivamente para a redução de externalidades negativas de um bem comum.

 

Externalidades Positivas e Negativas

O nosso sistema económico atual incentiva predominantemente a criação de valor individual sob a forma de bens privados. Os bens privados vêm acompanhados de direitos de propriedade privada que impedem outros de utilizar o bem ou consumir os seus benefícios, a menos que paguem por ele (excludentes). Com os bens físicos, o consumo por uma pessoa impede o consumo de outra (rival). Para os bens digitais é diferente, mas a escassez artificial pode ser criada com instrumentos de gestão de direitos digitais (proteção dos direitos autorais). Um bem privado pode ser alugado a outra pessoa, concedendo direitos de acesso temporários. As patentes também criam escassez artificial ao proporcionar monopólios temporários. Estes são mecanismos legais para impor a possibilidade de exclusão de qualquer outra pessoa que procure utilizar a tecnologia patenteada.

A criação de bens privados conduz frequentemente a “externalidades negativas” para bens comuns, como o ambiente. Tais externalidades negativas são reguladas por organizações locais, nacionais e internacionais, com leis (na sua maioria incentivos negativos), tributação (incentivos negativos, exceto legislação sobre isenções fiscais), nudging (incentivos positivos) e privatizações (mecanismos de mercado). As externalidades em economia referem-se aos custos ou benefícios que afetam uma pessoa ou comunidade, que não optou por incorrer nesse custo ou benefício. As “externalidades negativas” são o resultado de atividades de pessoas e instituições que causam um custo indireto (efeito negativo) sobre outras pessoas ou instituições. A poluição é um exemplo disso. O consumo de bens com uma pegada negativa de CO2 é outro. A produção industrial pode causar poluição atmosférica, impondo custos de saúde e de limpeza a toda a sociedade. Se esses custos não forem internalizados através de regulamentação governamental, aqueles que criam as externalidades continuarão a fazê-lo. As “externalidades positivas” podem surgir se, por exemplo, dois agricultores vizinhos tiverem efeitos ecológicos positivos um sobre o outro. Incentivar a redução das emissões de CO2 com um token pode ser outro exemplo de uma externalidade positiva, que pode contribuir para o bem-estar de um bem comum, como contribuir para uma melhor qualidade do ar de uma cidade. Ainda que a produção coletiva de bens públicos possa resultar em externalidades positivas, não exclui necessariamente outras externalidades negativas. Se não forem bem concebidos, os tokens direcionados a um propósito podem ter externalidades positivas e negativas: enquanto que o Proof-of-Work é um mecanismo essencial para a manutenção de um bem público, o ato de mineração de bitcoin em si consome energia intensa, produzindo externalidades negativas para a sociedade.

 

Economia Comportamental e Direcionamento Incentivado

O atual design de redes tokenizadas é confrontada com diversos problemas de free-rider e “tragédia dos comuns” que precisam ser antecipados ao conceber os mecanismos de governança dos tokens destas redes. Além disso, a maioria das abordagens de design de tokens baseiam-se no pressuposto de racionalidade: todos os agentes agem de forma egoísta e logicamente consistente com as suas preferências e crenças, e baseiam as suas decisões na utilização integral da informação. Os atuais mecanismos de consenso baseiam-se na ideia de uma teoria económica neoclássica e no conceito de um ator económico racional – “homo economicus” – que reduz a tomada de decisões económicas à simples maximização do lucro com base numa maximização do lucro individual e na ideia de “egoísmo perfeito”. Embora a ideia de “egoísmo perfeito” e os pressupostos de racionalidade possam fazer sentido no contexto de protocolos de Blockchain, uma vez que o “consenso” não é na realidade gerido diretamente pelos humanos e é quase exclusivamente uma atividade bot, tais pressupostos de racionalidade podem não fazer sentido para o design do mecanismo do comportamento humano em relação à redução das emissões de CO2, contribuições para uma rede social, ou contribuições para uma lista de curadoria tokenizada.

Teorias económicas alternativas, tais como a economia comportamental, baseiam-se no pressuposto de que a ação individual é mais complexa. A economia comportamental é um campo da economia que estuda o processo de decisão económica de indivíduos e instituições que são afetados por outros fatores que não a racionalidade económica. Fatores psicológicos, emocionais, culturais, cognitivos e sociais são também tidos em conta, concluindo-se que as pessoas tomam mais de 90 por cento das suas decisões com base em atalhos mentais ou “regras de ouro”. Especialmente sob pressão e em situações de grande incerteza, as pessoas tendem a confiar em evidências anedóticas e estereótipos para as ajudar a compreender e responder mais rapidamente aos acontecimentos. Assume-se que a racionalidade dos indivíduos e das instituições é “limitada” pelo tempo e por limitações cognitivas, e que são preferidas soluções suficientemente boas a soluções perfeitas. A economia comportamental assenta na aprendizagem da psicologia cognitiva, um campo da psicologia que estuda os processos mentais.

O direcionamento incentivado – nudging – sugere o pressuposto de “racionalidade limitada” e sugere que os indivíduos podem ser apoiados no seu processo de tomada de decisão, por exemplo, colocando alimentos mais saudáveis ao nível do campo de visão nos supermercados para aumentar as hipóteses de seleção pelos compradores. O nudging é um conceito que foi desenvolvido nos anos 90 e foi adotado por alguns políticos em países selecionados. A economia comportamental tem sido aplicada no contexto da elaboração de políticas, ambientes empresariais, e na modelagem de algoritmos de machine learning. Os críticos, no entanto, argumentam que o nudging é igual à manipulação psicológica e engenharia social. Os tokens orientados a um propósito também podem ser utilizados para “sugestionar” ou “orientar” indivíduos para determinadas ações, como a redução das emissões de CO2. No entanto, qualquer tipo de sistema de governança está a orientar a ação coletiva e, por definição, visa a engenharia social. A economia comportamental e métodos como o nudging podem, por conseguinte, fornecer ferramentas importantes ao conceber as regras de governança de tokens orientados a um propósito como um meio de fornecer bens públicos.

 

Psicologia Cognitiva e Análise Comportamental

Os incentivos tokenizados não são uma coisa nova e têm sido testados em psicologia para condicionar o comportamento. Em psicologia, o termo “economia token” refere-se a um tipo de programa de modificação do comportamento usando condicionamento operante, que foi descrito por A.E. Kazdin em 1977. Na análise comportamental, o termo “condicionamento operante” refere-se a um processo de aprendizagem através do qual o comportamento é modificado por reforço ou punição. Esta análise estuda a relação entre o comportamento e o estímulo externo, ou eventos que influenciam o comportamento. O nudging pode ser visto como uma ferramenta coletiva de condicionamento comportamental que foi derivada de disciplinas como a análise comportamental e o condicionamento operante. Kazdin foi também crítico do controlo da atitude, do pensamento e do comportamento humano, e apontou as implicações éticas que poderiam levar a um controlo totalitário. Embora ele descreva a “tecnologia comportamental” como eticamente neutra, afirma que o processo de governança, decidindo os objetivos e o grau de controlo que irá interferir com as liberdades individuais, determina se este sistema será usado ou abusado. Vários autores antes dele discutiram a utilização de princípios comportamentais para conceber a sociedade, e estas preocupações são semelhantes às preocupações relacionadas com a teoria do nudging.

No design do mecanismo de tokens orientados para um propósito, tais considerações éticas têm de ser feitas. Ainda há muito para aprender, e não apenas com a ética da economia comportamental. Disciplinas relacionadas, como a engenharia e a cibernética, também desenvolveram princípios éticos que podem ser relevantes para a engenharia dos tokens. A ética empresarial como parte da filosofia da economia também trata dos fundamentos filosóficos, políticos, e éticos dos negócios e da economia. A ética da engenharia, por exemplo, exige que tudo o que se projete, especialmente infraestruturas públicas, seja rigorosa e cuidadosamente testado para minimizar o risco de danos; a engenharia no domínio das infraestruturas acarreta responsabilidades para os engenheiros que não pratiquem as devidas diligências ou não respeitem as melhores práticas. A disciplina da cibernética tem o conceito de “cibernética de segunda ordem”, em que o utilizador tem consciência das suas intervenções, o que o torna parte do sistema que está a conceber ou a tentar influenciar.

 

Nos últimos anos, a ciência dos dados e as comunidades de I.A. – Inteligência Artificial – têm, na sua maioria, desconsiderado estes princípios, provavelmente como resultado da maximização do lucro sobre a ética. O discurso ético no contexto empresarial foi muitas vezes sacrificado em detrimento do pensamento de eficiência a curto prazo. Este foi um problema sistemático que começou com as universidades, como a minha própria alma mater, erradicando a ética empresarial do currículo geral de estudos nos anos 90. Integrar os princípios éticos da engenharia, cibernética e economia com os modernos conhecimentos em I.A. é o que há de mais próximo de um caso de referência para o design criptoeconómico de tokens orientados para um propósito.

 

Finanças Comportamentais e Teoria dos Jogos Comportamental

 

Os estudos de finanças comportamentais explicam porque é que os atores do mercado são economicamente “irracionais” e as consequentes ineficiências de tal comportamento irracional, bem como a forma como outros podem lucrar com tal (previsível) irracionalidade. Entre outros, as finanças comportamentais explicam como as reações a novas informações afetam os movimentos do mercado, tais como bolhas e crashes. Os resultados das finanças comportamentais são aspetos importantes a considerar quando se modelam tokens orientados a um propósito definido e mecanismos de mercado DeFi, alguns dos quais são discutidos na Parte 4 – Token de Curadoria de Registos.

 

A teoria comportamental do jogo é um subcampo da economia comportamental que analisa a interação das decisões estratégicas tomadas pelos diferentes participantes no mercado. Ela exige a compreensão do que motiva as pessoas para as suas ações. Os métodos aplicados são teoria do jogo, economia experimental e psicologia experimental, sendo que todas estudam os paradoxos na tomada de decisões pelos participantes num jogo. A teoria comportamental do jogo fornece alternativas para modelos tradicionais de tomada de decisão, tais como “teoria do arrependimento”, “desconto hiperbólico”, e “teoria da perspetiva”.  Por exemplo, as pessoas podem querer minimizar o sentimento de arrependimento depois de terem tomado uma decisão, e por isso podem avaliar as suas opções com base em quanto arrependimento podem sofrer devido ao resultado das suas estratégias.

O design dos tokens com propósito definido utiliza a teoria do jogo para modelar o raciocínio humano num mecanismo de direcionamento automatizado formalizado pelo protocolo ou contrato inteligente, e deve ter em conta as complexidades comportamentais. Existe, além disso, toda uma classe de jogos na literatura científica das redes chamada “jogos de formação de redes”, que cobre tudo desde a forma como surgem as citações académicas e as redes de colaboração, até aos “grafos” do Twitter, etc.

À medida que o campo da Criptoeconomia e dos tokens com propósito amadurece, é provável que as finanças comportamentais e a teoria comportamental do jogo encontrem o seu caminho para a modelação criptoeconómica de tais tokens com propósito. Muitos casos de uso de token, como os protocolos de consenso, os tokens de curadoria de registos (TCR), as curvas de ligação entre tokens, e tokens de algoritmo estável, foram construídos com base em pressupostos de racionalidade: todos os agentes agem de forma egoísta, maximizando o lucro, e logicamente consistentes com as suas preferências e crenças baseando as suas decisões no uso total da informação. Contudo, como aprendemos com as pesquisas em disciplinas comportamentais, esta suposição precisa ser complementada por outras formas de comportamento. É, portanto, necessário alargar os pressupostos das premissas criptoeconómicas atuais, levando em conta conceitos de economia comportamental, finanças comportamentais, teoria dos jogos comportamentais, e psicologia cognitiva, o que poderia ajudar a desenvolver mecanismos criptoeconómicos mais sofisticados.

 

Design de Mecanismos e Engenharia dos Tokens

O design de protocolos de consenso está relacionado a um subcampo de economia chamado “design de mecanismos”, que trata da questão de como deve ser o design de um jogo que incentive todos a contribuir para um objetivo coletivo. A teoria do design de mecanismos utiliza incentivos económicos em combinação com a criptografia. A finalidade é atingir um objetivo desejado num cenário estratégico onde se assume que todos os jogadores agem racionalmente. É também referida como “teoria da indução retroativa”, uma vez que começa no final do jogo, e depois retrocede ao conceber o mecanismo. Hurwicz, Maskin, e Myerson receberam o Prémio Nobel da Economia de 2007 pela sua investigação sobre Design de Mecanismos.

Nem todos os tokens precisam ser um produto de mecanismos criptoeconómicos. Os ativos tokenizados, tais como tokens de valores mobiliários, podem simplesmente representar direitos de propriedade ou direitos de acesso utilizando simples contratos inteligentes. Por outro lado, os tokens com propósito específico necessitam de mecanismos orientados para objetivos específicos. O design dos mecanismos dos tokens, também referido como “engenharia dos tokens”, é um campo emergente. No entanto, as melhores práticas para além do Proof-of-Work e do Proof-of-Stake são escassas, e muitos dos casos de utilização existentes têm consideráveis falhas de design. Incentivar a redução das emissões de CO2 com um token, por exemplo, não é trivial e provavelmente requer pelo menos tanta pesquisa rigorosa como a necessária para desenvolver o Proof-of-Work. O caso de uso é mais complexo e requer dados do mundo exterior, tais como oráculos de hardware e oráculos de software. O design de mecanismos da maioria dos tokens existentes, orientadas para propósito específicos, não conseguem integrar dinâmicas comportamentais mais complexas nos seus protocolos. A fim de podermos abordar adequadamente questões como a “tragédia dos comuns” e os problemas do “free-rider“, precisamos de uma concepção muito mais matizada do design de mecanismo destes tokens.

A engenharia de tokens é um termo emergente com uma abordagem mais interdisciplinar, que foi cunhado por Trent McConaghy no seu artigo, “Towards a Practice of Token Engineering“. Ele define a engenharia de token como a teoria, prática, e ferramentas para análise, design e verificação dos ecossistemas tokenizados. Ele apresenta semelhanças entre a criação de mecanismos token e engenharia eletrotécnica, robótica swarm, pesquisa de operações, engenharia de software, engenharia civil, engenharia aeroespacial, design de sistemas complexos, design de políticas públicas, economia específica, robótica, machine learning e IA. Todas estas disciplinas partilham uma forte dependência da matemática da otimização e da tomada de decisões (ler mais: Parte 4 – Como Conceber um Sistema Token).

Contudo, devido à natureza social das redes tokenizadas, o design de mecanismos e o design de mercados como subcampos da economia e da política pública precisam ser incluídos na lista de campos relevantes. Os protocolos que governam uma rede autónoma de atores, incluindo as suas regras, agentes, nós, tokens e estruturas de governança, assemelham-se a Estados-Nação e não a empresas. Por conseguinte, é necessário analisar os instrumentos que os Estados-Nação utilizam para modelar o comportamento dos seus agentes: macroeconomia, microeconomia, e especificamente economia comportamental, finanças comportamentais, teoria comportamental do jogo, e algumas escolas heterodoxas, como a economia institucional, a economia ecológica, e a economia da complexidade. Será necessário identificar modelos, abordagens e soluções existentes, e avaliar se e como podem ser adaptados para a criação de mecanismos úteis no contexto de redes tokenizadas com o objetivo de alcançar uma meta coletiva.

A economia e a matemática, e mesmo as disciplinas de engenharia, já desenvolveram vários modelos e abordagens para formalizar os motivos económicos e maneirismos dos agentes racionais, que foram e continuam a ser utilizados pelos governos, reguladores e instituições nacionais. A questão a resolver é se, e em qual medida, estes modelos económicos podem ser aplicados no contexto de ecossistemas movidos por tokens. Isto pode ser feito (i) identificando semelhanças entre a economia de tokens e os campos científicos da economia existentes, mas também a robótica, automação e engenharia de controlo, que também fornecem métodos de trabalho apesar da incerteza. Há também muito a aprender com os Cyber Physical Systems (CPS), que controlam redes de energia que representam infraestruturas físicas descentralizadas com condições ambientais variáveis e comportamento descentralizado de agentes estratégicos por parte dos consumidores de energia. Além disso, (ii) formalizando modelos de concepção de redes e de avaliação de redes para ecossistemas tokenizados com base em modelos económicos e matemáticos existentes, e (iii) concebendo uma estrutura de engenharia de token de baixo para cima para permitir a futura concepção de ecossistemas de ponta.

A criação de um mecanismo é um problema de otimização que visa maximizar uma função objetiva para atores individuais (tais como os seus rendimentos ou reputação), sob um conjunto de restrições. Embora o protocolo Ethereum e outros similares tenham tornado possível criar qualquer tipo de token com algumas linhas de código, utilizando um simples contrato inteligente que funciona numa infraestrutura pública, ainda (i) nos faltam blocos e padrões arquetípicos de construção, também referidos como “primitivas criptoeconómicas”[1]; (ii) também nos faltam as ferramentas de modelação e previsão necessárias para o design das funcionalidades de governança desses tokens, especialmente para tipos mais complexos de tokens orientados a um propósito específico que pretendem auto-incentivar algum tipo de comportamento numa rede de agentes autónomos; (iii) além disso, existem poucas melhores práticas para o design de tokens. Embora muitos tokens tenham sido emitidos através da venda de tokens nos últimos anos – sobretudo para fins de angariação de fundos – a maioria destes tokens emitidos carece de funcionalidade e design de mecanismos adequados. Até agora, tem havido pouca sobreposição com a comunidade académica que estuda este campo e com os criadores de muitos “tokens orientados a um propósito específicos”. A comunidade de emissores de tokens será aconselhada a utilizar métodos e resultados do design de mecanismos no próprio protocolo de tokens com propósito específico.

[1]  As primitivas criptoeconómicas podem ser definidas como ferramentas criptográficas, normas e blocos de construção que nos permitem construir aplicações económicas descentralizadas. As primitivas mais simples são tokens criptográficos. As primitivas de nível superior têm uma natureza reguladora e incluem mecanismos de consenso, token de curadoria de registos, tokens estáveis, ou mercados de previsão.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Steemit é uma rede social descentralizada onde as contribuições em prol da rede são recompensadas com tokens da rede. Funciona na Blockchain da Steem, uma Blockchain com fins especiais que fornece uma infraestrutura pública para a rede social descentralizada.

Aviso: as regras de governança da Steemit e da Blockchain Steem subjacente estão sujeitas a frequentes alterações de protocolo. A documentação é fragmentada e alguns factos são difíceis de investigar. A fim de compreender plenamente as atuais regras de governança, é necessário ler o código atual. Alguns factos mencionados nos capítulos seguintes podem, portanto, estar desatualizados ou ser inconsistentes. No entanto, devem ajudar a pintar um quadro das complexidades do sistema. No momento da redação do livro, a rede Steem dividiu-se numa nova continuação (Hive) conduzida pela comunidade central e está sujeita aos acontecimentos atuais. Embora a rede pareça estar em declínio, serve, no entanto, como um caso de utilização tangível para a exploração das melhores práticas e das piores práticas para a tokenização das redes sociais.

Steemit é uma aplicação descentralizada que opera na Blockchain Steem. Ao contrário das aplicações de redes sociais baseadas na Web2, Steemit não tem (i) anúncios publicitários; (ii) todos os dados da ledger são públicos, o que significa que nenhuma instituição é proprietária dos seus dados de transação; e (iii) os contribuintes da rede são recompensados com tokens da rede. Quanto é pago é uma função do número das suas contribuições, e da popularidade das suas contribuições. Steemit não é permissionada, permitindo a qualquer utilizador aderir gratuitamente. A inscrição é feita por e-mail ou número de telefone e verificada manualmente por um administrador. Uma alternativa é pagar uma taxa para criar a conta. Ambos os procedimentos pretendem criar um esforço/custo para a criação da conta, a fim de combater o spam, bots, e nomear os ocupantes.

Steemit é provavelmente a primeira e mais longa aplicação descentralizada operante. Foi conceptualizada em 2015 e está operacional desde 2016. No momento da redação deste livro, a rede tem mais de um milhão de utilizadores registados, 25.000 posts, 100.000 comentários, e 1,4 milhões de transações na Blockchain Steem por dia. É, portanto, um dos projetos mais maduros da comunidade criptográfica. Steemit iniciou as operações aproximadamente na mesma altura em que surgiu a rede Ethereum, ou seja, antes de ser possível criar uma aplicação descentralizada sem ter de criar a sua própria infraestrutura distribuída. Do ponto de vista da atualidade, o protocolo Steemit parece demasiado complexo e desatualizado. Na altura, porém, era um projeto visionário que estava à frente do seu tempo. Os fundadores do projeto criaram a sua própria infraestrutura para fins especiais (a Blockchain Steem com o token nativo, STEEM) e o seu próprio token com valor indexado ao dólar americano (STEEM Dólar). Atualmente, este nível de complexidade não seria necessário, dado que qualquer pessoa poderia construir uma rede social descentralizada numa rede de contratos inteligentes como a Ethereum, e utilizar um dos muitos tokens estáveis (i.e., indexados a uma moeda fiat) disponíveis publicamente. O fundador, Dan Larimer, também criou “BitShares” e a rede Blockchain “EOS”, ambas utilizando “Graphene” como mecanismo de consenso. A Blockchain Steem também utiliza Graphene e fornece uma infraestrutura para a rede social Steemit, bem como para outras aplicações descentralizadas tais como (i) d.tube,” uma plataforma de vídeo descentralizada semelhante ao YouTube, e (ii) d.sound,” um serviço de streaming de áudio descentralizado semelhante ao Spotify ou Soundcloud. Tanto a d.tube como a d.sound utilizam a Blockchain Steem para fazer cumprir os seus contratos inteligentes, mas têm menos utilizadores e tráfego que a Steemit. Os ficheiros de vídeo e som são armazenados em IPFS,” um protocolo de armazenamento de ficheiros descentralizado. Embora Steemit tenha muitas falhas de design, fornece um caso de uso elucidativo para a compreensão de aplicações de redes sociais tokenizadas e descentralizadas.

 

Problemas Atuais das Redes Sociais

Durante a última década, as redes sociais tornaram-se uma parte importante da forma como as pessoas comunicam com os seus pares e consomem informação. Com o surgimento das redes sociais, os meios de comunicação tradicionais tornaram-se desprofissionalizados. Todos podem contribuir e curar conteúdos para influenciar a opinião pública, simplesmente através da criação de uma conta nas redes sociais. O Facebook, Twitter, e Reddit substituíram os jornais, o YouTube substituiu a televisão, e o “deslizar” e o “scroll” tornaram-se o “mudar de canal”. À medida que estas plataformas de redes sociais ganharam força, transformaram-se num espaço aberto para livre expressão num oligopólio de alguns grandes atores.

Nos primeiros anos, o processo de curadoria em sites de redes sociais como o Facebook e o Twitter costumava estar na autonomia do utilizador. Esta autonomia foi substituída por feeds de dados baseados em algoritmos desenvolvidos pelos fornecedores da plataforma, e os feeds estão agora a ser injetados com um número crescente de anúncios. As plataformas de redes sociais tornaram-se as curadoras do nosso conteúdo e estão em pleno controlo do nosso feed de dados. Muito frequentemente, estes feeds de dados socialmente gerados são programados para manter o utilizador na plataforma o máximo de tempo possível, torná-los viciados, e otimizar as receitas publicitárias, dando frequentemente prioridade aos posts com conteúdo mais popular e reprimindo os posts marginais que não têm tantos gostos (ler mais: Basic Attention Token e Token de Curadoria de Registos).

Embora os utilizadores contribuam com conteúdos valiosos e serviços de curadoria, eles não têm como monetizar diretamente as suas contribuições para a rede. Além disso, o conteúdo que é colocado nessas plataformas está sujeito a potencial censura e controlo por parte das empresas que as operam, e em alguns países, mesmo por parte das autoridades governamentais. Os utilizadores podem ser proibidos de publicar tipos específicos de conteúdos, e as contas de utilizadores podem ser desativadas a qualquer momento. A privacidade e o controlo dos dados é outra questão destas plataformas de redes sociais baseadas na Web2. Informação pessoal e comportamento dos utilizadores, tais como preferências de conteúdo, padrões de compra, orientação sexual, raça, género, ou opiniões políticas, são rastreados e armazenados nos servidores das empresas que fornecem esses serviços de redes sociais. Esses dados também podem ser transmitidos a outras empresas e instituições. Embora essa coleção de dados sirva principalmente como base para gerar receitas de publicidade a partir de publicidade dirigida, tem sido também utilizada para manipulação política, podendo servir de base para avaliações de carácter e perfil social. Incidentes como o escândalo da Cambridge Analytica, em que dados pessoais foram transmitidos a outras instituições que posteriormente os utilizaram para manipular os eleitores nas eleições presidenciais dos EUA em 2016 ou antes do referendo do Brexit, minaram a confiança do público em geral em relação às redes sociais.

 

Economia de Tokens da Steemit

Redes sociais descentralizadas como a Steemit não têm (i) monopólio de dados, o que significa que todos têm acesso a todos os dados de transações, que são publicamente visíveis no explorador de blocos Steem, e (ii) não são necessárias receitas publicitárias, uma vez que a rede é gerida coletivamente por (iii) contribuintes que são recompensados com tokens pelas suas contribuições para a rede. Para encontrar ou “tagar” (etiquetar) conteúdo, pode-se usar “etiquetas e tópicos” que ajudam a classificar o conteúdo em fluxos individualizados. Como tal, Steemit é muito mais semelhante ao Reddit do que ao Facebook. Os utilizadores são recompensados pelas suas contribuições para a rede com três tipos diferentes de tokens da rede: “STEEM“, “STEEM Dollar“, e “STEEM Power“.

STEEM é o token nativo da Blockchain Steem. Tal como acontece com todos os tokens nativos de Blockchain, os tokens são transferíveis e são criados novos tokens todos os dias. 

STEEM Power (SP) é um token de reputação concebido para refletir a influência de cada um na rede social. Qualquer pessoa que abra uma nova conta recebe uma quantidade inicial de tokens SP. Depois disso, pode ser recompensado pela sua contribuição para a rede em SP. Em alternativa, SP pode ser comprado com STEEM a uma paridade de 1:1. Este processo é referido como “powering up”. Quanto mais SP se tiver, mais as contribuições para a rede são recompensadas. Se alguém com muito SP fizer upvote[1] de um post de outro utilizador, esse utilizador será recompensado com mais tokens do que receberia se outro utilizador com menos SP fizesse o upvote do seu conteúdo. SP pode ser convertido novamente em Steem, o que é referido como power down, mas o processo é intencionalmente desacelerado para treze semanas para evitar que os utilizadores vendam os seus tokens de uma só vez com vista a evitar quedas de preços e manipulações de mercado.

STEEM Dollar (SBD) tem o design de um stable token (token estável) que está indexado ao dólar americano numa paridade de 1:1. Ele pode ser comprado no mercado aberto ou ganhado (cinquenta por cento da recompensa pelas contribuições na rede social são pagas em SBD). Uma vez obtidos, estes tokens SBD podem ser: (i) liquidados; (ii) conservados; ou (iii) convertidos em STEEM e depois vendidos no mercado aberto após um processo de conversão de 3,5 dias para evitar “ataques de arbitragem”. Como o SBD é desenhado para ter preço estável, os detentores de tokens SBD perdem os aumentos de preço do STEEM. Para incentivar os detentores de tokens SBD a manterem a sua SBD, eles recebem 10% de juros por ano. Esta taxa de juro é variável e pode ser alterada numa atualização do protocolo.

A rede social Steemit tem três tipos diferentes de utilizadores: (i) criadores de conteúdo: publicam conteúdo; (ii) utilizadores ativos: curadores de conteúdo através de upvote (like) do conteúdo, e (iii) utilizadores passivos: consomem conteúdo. Um criador de conteúdo pode publicar um post, mas só será recompensado com tokens se e quando o post receber upvotes de outros utilizadores (curadores de conteúdo). Se um post tiver um bom desempenho, um curador que tenha feito upvote a este post ganhará mais SP do que por ter feito upvote num post menos popular. As recompensas são pagas a partir de dois grupos de recompensa e distribuídas numa mistura dos diferentes tokens, Steem Power e Steem Dollar, e esta distribuição é determinada individualmente pelo criador do conteúdo. As recompensas só são pagas nos primeiros sete dias após o conteúdo ter sido publicado. Após esse período, o post ainda estará online, mas não será mais possível ganhar recompensas com o post. Qualquer pessoa pode publicar e fazer upvote a um conteúdo, contribuindo assim para a curadoria coletiva do conteúdo.

A quantidade exata de tokens obtidos é função do número de upvotes que um post recebe, e também uma função da quantidade de Steem Power que os curadores que fazem upvotes têm. Se um curador tem 2.000 Steem Power e outro tem 20.000 Steem Power, os efeitos desses dois upvotes serão diferentes. Para incentivar o conteúdo de qualidade, o número de upvotes que um utilizador pode realizar dentro de um determinado período de tempo é limitado. Para aumentar a complexidade, se o mesmo utilizador decidir fazer upvote de vários posts, o peso de cada voto diminuirá, dependendo de quanto tempo passa entre os votos. A rede recarrega o poder de voto em 20 por cento ao dia. A ideia de ambos os mecanismos é evitar o spam dos votos e incentivar as decisões de qualidade. Na realidade, porém, para ganhar mais tokens, as pessoas votam em conteúdos que esperam que sejam populares, tais como memes, e não necessariamente o que considerariam como conteúdo de qualidade.

A aplicação Steemit é operada na rede Blockchain Steem que utiliza “Delegated Proof-of-Stake” (DPoS)” como um algoritmo de consenso. DPoS é uma variação do Proof-of-Stake em que a comunidade de detentores de tokens na rede Blockchain subjacente vota em 21 das chamadas “testemunhas” para as quais delegam os seus tokens STEEM. As testemunhas verificam as transações e criam blocos em nome dos detentores de tokens que lhes delegaram os seus tokens. Quando se trata do desempenho da rede, o DPoS é muito mais escalável do que o Proof-of-Work[2], escalabilidade esta que é um pré-requisito para uma rede social com milhares de transações por segundo.

A Blockchain Steem cria consistentemente novos tokens STEEM, que são adicionados a uma “pool de recompensas” a partir da qual os detentores de tokens serão recompensados de acordo com as regras de governança definidas no protocolo. De acordo com as atuais regras de governança, 15% dos novos tokens minerados são atribuídos às pessoas que detêm SP, 75% vão para os criadores e curadores de conteúdos, e 10% dos novos tokens minerados são pagos a testemunhas. A política monetária inicial dos tokens STEEM era altamente inflacionária na oferta, quase duplicando todos os anos. Devido à pressão da comunidade, a taxa de inflação do STEEM foi ajustada para 9,5 por cento ao ano. No momento da redação do livro, a taxa de inflação do STEEM é de 9%, e diminuirá 0,5% todos os anos.

 

Críticas à Steemit

Enquanto Steemit e a infraestrutura da Blockchain Steem subjacente são um grande caso de uso para a forma como podemos redefinir redes sociais, a economia por detrás do token tem algumas falhas fundamentais de design. Além disso, uma vez que todos os dados sobre a Blockchain Steem são públicos, qualquer pessoa pode criar aplicações descentralizadas com estes dados para criar ferramentas úteis para a comunidade Steemit, tais como “Catch a Whale[3] ou “Steem Market[4].

Open Data: ao contrário das plataformas de redes sociais Web2, todos os dados de transações na Blockchain Steemit são públicos e transparentes para todos com uma simples análise em cadeia. Isto significa que qualquer pessoa pode inspecionar o que aconteceu, quando ou quem fez o quê no ecossistema Steemit. Como tal, Steemit é menos como o Facebook (onde só os seus amigos podem ver o que publica), mas mais como o Twitter, Medium, ou YouTube, onde todos podem ver o que você fez. Algoritmos criptográficos alternativos como a multiparty computation[5] ou zero-knowledge proofs[6] e técnicas adicionais de ofuscação precisam de ser implementadas no protocolo para proporcionar um design mais focado na privacidade[7]. A tendência atual na comunidade Web3 de construir mais Blockchains que preservem a privacidade parece ter inspirado a Steemit a desenvolver um roadmap para a ofuscação de pelo menos alguns dos dados públicos.

Reputação pode ser comprada com dinheiro: Steemit pretendia originalmente conceber uma rede social para conteúdos de qualidade. No entanto, devido às falhas no design do token de reputação, existem atualmente muitas questões de incentivo e fornecimento de conteúdos de qualidade. Embora o STEEM Power (SP) supostamente seria um token de reputação, baseia-se em suposições demasiado simplificadas sobre a forma como os atores da rede se comportam. Os mecanismos do token não consideram a “tragédia dos comuns” ou o pensamento económico a curto prazo. Os tokens de reputação, sob a forma de Steem Power, podem ser comprados com moeda fiduciária. Os utilizadores que estão dispostos a investir uma quantidade considerável de dinheiro em STEEM Power podem, por conseguinte, alavancar o seu poder de rede e ganhar mais dinheiro mais rapidamente do que os utilizadores que tentam construir organicamente a sua reputação. Este design de token bastante simplista baseia-se no pressuposto de que aqueles que têm mais tokens, são automaticamente incentivados a contribuir para a rede com conteúdo de melhor qualidade ou atividade de curadoria. Além disso, o design do token de reputação não leva em linha de conta os diferentes interesses dos utilizadores, e que os “gostos” individuais são relativos. Qualquer design de token de reputação significativo provavelmente precisa de ser subjetivado, em vez de ser uma métrica universal para todos os utilizadores da rede. Ao longo dos anos, estas falhas de design conduziram a uma monopolização do poder por parte de alguns abastados detentores de tokens, criando grandes assimetrias de poder na rede. Se vale ou não a pena contribuir economicamente para a rede depende das taxas de câmbio atuais de todos os tokens, e é também uma função do seu próprio SP. A análise recente da rede mostra que apenas 2% dos posts recebem retornos dignos de nota, a maioria dos quais provavelmente não compensa os custos de produção, o que também resulta em grande parte das assimetrias de poder.

Assimetrias de poder: os únicos números confiáveis são de vários anos atrás, quando os dez maiores detentores de tokens controlavam 79,3% de SP, 85% de Steem, e 45% de SBD. Com base nos números disponíveis, os utilizadores medianos detêm uma média de cerca de 2.000 SP ou menos, enquanto os detentores de tokens high–net worth, também referidos como baleias (whales), detêm 2.000.000 de SP. Note-se que não é claro se as rich-lists publicadas estão atualizadas, e que não existe nenhum gráfico de distribuição a ser encontrado. As listas disponíveis (ver links nas referências) têm pouca documentação. É seguro assumir que esta divisão de poder se alargou nos últimos dois anos e que a base do atual design de incentivos favorece os grandes detentores de tokens em ganharem proporcionalmente mais tokens numa só contribuição.

Bots e venda de votos: em teoria, o design do mecanismo de incentivo encoraja os utilizadores a criarem e a fazerem curadoria de conteúdos relevantes e de qualidade. A realidade da atividade da rede mostrou que o modelo de recompensa incentiva a criação de conteúdos ao estilo “clickbait” impulsionados por bots. Embora exista alguma prevenção de bot, relacionada com o processo de criação de contas, Steem Power é um token transferível, o que significa que pode ser delegado de um utilizador para outro. Isto levou ao surgimento de bots programados para o upvote de posts com base na sua potencial rentabilidade. Os bots podem dividir a recompensa com os detentores do token que lhes delegaram o seu SP. Como resultado, a curadoria de conteúdo no Steemit não se baseia, muitas das vezes, na qualidade, mas é otimizada para maximizar os lucros. O conteúdo é produzido para ser potencialmente lucrativo, e os criadores podem ter em conta qual o conteúdo que será provavelmente notado por curadores e bots de alta reputação. Os bots podem fazer upvote a outros bots para criar feedback circular sobre as expectativas de lucro, considerando que uma votação é mais lucrativa se for lançada relativamente cedo, e num caso em que mais votos irão ainda acontecer. Outros desafios do design da governança da Steemit são a venda de votos, a intimidação por parte dos membros mais ricos, a monopolização da influência para estabelecimento de políticas, evidente controlo por grandes detentores de tokens, e a censura forçada.

Auto-upvoting: a Steemit permite aos utilizadores o autoupvoting dos seus próprios posts, e isto tem sido objeto de muitas discussões na rede. Os opositores criticam a tendenciosidade no ato de auto-upvoting, uma vez que reduz a qualidade do processo de curadoria. Os defensores afirmam que não fazer o upvote do seu próprio conteúdo significa diluir a sua própria aposta, e dar o seu poder apenas a outros utilizadores. Além disso, argumentam que, se os utilizadores quiserem fazer auto-upvote e já não o puderem, simplesmente criarão uma segunda conta para tal.

Governança do conteúdo: o conteúdo na Steemit não está a ser moderado ou censurado. Alguns veem isto como uma falta de governança. Enquanto alguns membros da comunidade favorecem “aplicações descentralizadas resistentes à censura”, outros criticam a falta de moderação dos conteúdos, especialmente quando se trata de pornografia infantil. Por outro lado, parece que alguns utilizadores foram banidos da Steemit por violações dos “Termos de Serviço”.

Gestão de chaves: a usabilidade do software de wallet (carteira) e recuperação de chaves é importante. Os sistemas baseados em Blockchain não permitem a recuperação centralizada de senhas. Os utilizadores da Steemit que percam as suas chaves de acesso, e que não tenham um backup, perdem o acesso aos seus fundos. Enquanto não existirem soluções de recuperação de senhas sociais (social key), a gestão segura de senhas será um factor de estrangulamento para a adoção por parte dos utilizadores.

Atração e retenção do utilizador: enquanto muitos dos primeiros utilizadores da Steemit aderiram à rede por razões ideológicas, a grande maioria dos utilizadores são apenas utilizadores ocasionais, ou fazem alguns posts e acabam por não regressar por várias razões. Demora tempo para construir uma base de seguidores antes de se conseguir começar a ganhar dinheiro com as suas contribuições. Além disso, as atuais desigualdades de distribuição na rede, que resultam dos mecanismos de incentivo do token que favorecem os primeiros utilizadores e os grandes detentores de tokens que têm um número desproporcional de tokens da rede, não tornam atrativa a permanência dos utilizadores na rede.

 

O Hard Fork da Steemit: Hive Network

Em fevereiro de 2020, a Steemit Inc. foi adquirida pela fundação Tron, que gere a Blockchain Tron. Os membros da comunidade do ecossistema Steem expressaram preocupações sobre esta aquisição e a nova liderança, em particular sobre o seu CEO Justin Sun que, entre outras coisas, propôs um plano de migração dos tokens STEEM para a rede Tron. A maior preocupação, contudo, foi que com esta aquisição, a Fundação Tron também ganhou o controlo de cerca de vinte por cento do supply total dos tokens STEEM que a comunidade coloquialmente refere como a “Steemit Inc ninja-mined stake”. Estes tokens ninja foram pré-minerados há anos e distribuídos aos fundadores da Steem, que agora venderam a Steemit Inc. à Fundação Tron. Embora os tokens ninja tivessem sempre constituído uma ameaça, nunca tinham sido utilizados ativamente (tal como para votar nas atualizações da Steemit). No passado, a comunidade Steem estava confiante de que os fundadores da rede não iriam utilizar indevidamente os tokens para assumir o controlo da rede. No entanto, devido à desconfiança depositada nos novos proprietários e ao medo de uma potencial tomada de poder, as testemunhas da Steem executaram quase imediatamente um soft fork da Blockchain Steem utilizando os votos dos utilizadores da rede que lhes tinham sido delegados.

Com este soft fork, os endereços dos tokens ninja foram bloqueados de futuras atividades para tomar o controlo sobre a rede. A comunidade votou a favor deste fork para impedir que os novos proprietários (a Fundação Tron) utilizassem os tokens ninja. As testemunhas justificaram o soft fork como um protocolo de proteção temporária para manter o status quo atualmente estabelecido no que diz respeito à participação da Steemit Inc e ao seu uso pretendido […] e ao seu uso continuado dos bens que controla”. No início de março de 2020, um fork liderado pela comunidade falhou porque a fundação Tron coordenou com uma grande quantidade de Exchanges para desfazer retroativamente o soft fork com os tokens dos utilizadores hospedados nessas Exchanges. Esta utilização abusiva dos tokens de utilizadores por parte das Exchanges foi altamente contestada.

Em vez de lutar pelo poder dentro da rede Steem, a comunidade central conduziu uma secessão através de um hard fork. Em meados de março de 2020, o fork do protocolo da Blockchain Steem e a aplicação Steemit foram introduzidos numa nova rede chamada “Hive”.  Todos os tokens ninja controlados pela Steemit Inc. foram censurados e não foram por isso refletidos na rede “Hive”. Todos os outros tokens da rede estão a ser portados para a “Hive”. Todos os dados dos blogs da aplicação Steemit foram também portados para a rede “Hive”. Dependerá de cada blogger decidir quais as aplicações a utilizar no futuro, Steemit ou Hive. Se os bloggers continuarem a publicar na Steemit, as suas novas publicações continuarão a ser geridas pela Blockchain Steem; se escolherem o contrário, as suas novas publicações serão publicadas na rede “Hive”. Em teoria, todas as outras aplicações em funcionamento na Blockchain Steem, tais como “Splinterlands”, “Steemian”, “d-tube”, e “d.sound” poderiam, em teoria, migrar também para a rede “Hive”.

A tomada de controlo e o subsequente soft fork e hard fork demonstraram a natureza descentralizada das redes em Blockchain e também mostraram potenciais vetores de ataque ao mecanismo de consenso Delegated-Proof-of-Stake[8] (DPoS). O que pretendia inicialmente ser uma rede descentralizada provou ser propensa a esforços de centralização, tanto do lado da aquisição da fundação Tron como do seu conluio com as Exchanges que utilizaram os tokens dos seus utilizadores para conduzir os votos (sem o consentimento prévio dos seus utilizadores). Também mostrou o poder das testemunhas, que atuaram como os líderes destes forks.

O CEO da fundação Tron percebeu os forks como um ato de “hackers maliciosos” violando a “santidade da propriedade privada” e censurou cerca de 4500 posts e comentários relacionados com a Hive. No entanto, dada a diáspora dos bloggers da Hive, a fundação Tron e as Exchanges envolvidas no bloqueio das atividades da comunidade recuaram mais tarde nas suas decisões e moderaram o seu tom. Os novos proprietários da Steemit Inc. admitiram que tinham censurado os posts baseados na Steemit que discutiam o hard fork da Hive e justificaram com o argumento da preservação dos interesses privados. A diáspora dos utilizadores forçou os novos proprietários a publicarem um post no blog numa tentativa de recuperar a confiança, dizendo que queriam “colocar a governança de novo nas mãos da comunidade o mais depressa possível […] e convencer os utilizadores a voltarem ao projeto Steemit”. Todo o conflito reflete a mudança cultural entre a Web2 e a Web3, e mostra que alguns indivíduos e instituições ainda estão a lutar para compreender a natureza descentralizada da Web3 e a mudança de paradigma relativamente ao controlo centralizado.

Enquanto a Steemit preparou o caminho para uma nova era de redes sociais, demonstrando como podemos repensar as redes sociais numa economia tokenizada, as falhas de design são consideráveis. Se Steemit ou Hive quiserem sobreviver, terão de mudar a economia dos tokens e erradicar as desigualdades nas estruturas de poder e proceder ao design de um token de reputação que esteja ligado à identidade dos utilizadores. Caso contrário, os novos criadores de conteúdos terão dificuldade em ser notados no sistema. Embora a Blockchain Steem e a aplicação Steemit se tenham continuamente adaptado às regras de governança, levando a sério algumas das opiniões da comunidade, as falhas de design do token podem ser muito pertinentes. Novos concorrentes, tais como Akasha”, “all.me”, “Belacam”, DLive” “E-chatGolos” “Minds” “Mithril”, “5media”, “Social X”, ou UUNIO” poderão prover uma economia de tokens mais resiliente nos próximos anos.

 

Reddit: Tokenizando Plataformas Web2

“Reddit” é uma plataforma de média social Web2 para discussões temáticas – subreddits – que oferece um sistema de rating por contribuição. Os subreddits representam quadros criados pelos utilizadores que ajudam a canalizar as discussões em torno de uma variedade de tópicos. Os utilizadores podem submeter os seus comentários, que podem ser upvoted, downvoted ou comentados por outros utilizadores. A classificação da visibilidade de um post é determinada pelo número de votos upvote e downvote. Os pontos “Karma” determinam a reputação dos utilizadores na rede. Reddit foi originalmente fundada em 2005 e tem mais de 2 milhões de comunidades subreddit[9] e está classificada entre os 20 sites mais visitados em todo o mundo[10]. Em maio de 2020 dois subreddits – r/Cryptocurrency e r/FortNiteBR – com mais de 2,4 milhões de utilizadores anunciaram o lançamento dos seus próprios tokens subreddit – MOON e BRICK – que serão individualmente geridos pela rede Ethereum. Ambos os tokens poderiam ser vistos como um caso de teste de utilização para a tokenização de todos os subreddits com os seus tokens comunitários orientados para um propósito específico. Os tokens serão inicialmente geridos pela testnet da Ethereum “Rinkeby” durante alguns meses antes de migrarem para a rede principal da Ethereum. O “Reddit Vault” é uma carteira Ethereum integrada nas aplicações móveis e comunicações da Reddit com a rede Ethereum. Ambos os tokens são concebidos para serem transferíveis, e os utilizadores podem enviar os seus tokens MOON e BRICK para qualquer outra carteira compatível com ERC-20. Os tokens também vêm com direitos de voto especiais dentro da comunidade, no entanto, ainda não está claro como será esse processo de votação. Neste desenho inicial, os tokens podem ser usados para animar emojis, crachás exclusivos e para responder aos comentários do Reddit usando gifs. A política monetária dos tokens varia e pode ser determinada pela comunidade de cada subreddit, pelo menos em certa medida. Isto significa que cada comunidade de cada subreddit terá um certo controlo sobre as propriedades e função do token (taxa de emissão, processo de cunhagem, direitos de voto, transferibilidade, propriedades de utilização). O “r/Cryptocurrency” anunciou que os tokens MOON têm uma taxa de emissão fixa por mês, 5 milhões de MOONs, que diminuirão 2,5% todos os meses até ser atingido um total de 250 milhões. O “r/FortNiteBR” não especificou uma taxa de emissão para os seus tokens BRICKS. No momento da redação deste livro, ainda não está claro se ou quando as Exchanges listaram os tokens. Com esta mudança, o Reddit é a primeira rede social baseada na Web2 que anunciou oficialmente a tokenização das suas atividades de média social. É provável que outras redes sociais existentes façam o mesmo em breve. O maior desafio será o design do token para que o objetivo desejado do sistema económico criado pelo token não possa ser centralizado.

[1] Dar favorito, curtir, clicar no botão de “like”.

[2] Proof-of-Work

[3] “Catch a Whale” é uma aplicação que rastreia o que os grandes detentores de tokens (baleias) votaram a favor.

[4] “Steem Market” permite aos utilizadores comprar, vender, e alugar bens com a Steem.

[5] Multiparty computation é um esforço criptográfico que permite a vários servidores computarem em conjunto um output sem que um único servidor conheça todos os inputs, e pode ajudar a publicidade anónima agregada.

[6] Zero-knowledge proofs são esquemas criptográficos que permitem a uma parte verificar uma solução com o mínimo ou nenhum tipo de informação transmitida. Normalmente, as aplicações aqui são transações confidenciais, e permitem provar a autenticidade, sem dar detalhes pessoais. Outro caso de utilização possível poderia ser na prova de aplicabilidade de anúncios a editores sem dar dados pessoais.

[7] Privacy by design refere-se aos esforços empreendidos no design de um sistema para proteger a privacidade em todas as etapas possíveis, em vez de negligenciar a privacidade e tentar encontrar formas de implementação mais tarde.

[8] Prova de Participação Delegada

[9] https://redditmetrics.com/history

[10] https://www.alexa.com/siteinfo/reddit.com

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Em junho de 2019, o Facebook, uma rede social baseada na Web2 com mais de 2 biliões de utilizadores ativos, anunciou uma mudança para a Web3. A rede social referiu-se a essa mudança como “Facebook lançando uma moeda criptográfica”. A realidade, no entanto, é mais complexa, uma vez que o Facebook não está apenas a planear lançar um token, mas também toda uma rede, criando assim a sua própria infraestrutura para gerir esse token. O white paper afirma que o consórcio Libra (atualmente DIEM) iria lançar a sua própria ledger distribuída, que administraria um token nativo – Libra. A carteira Calibra seria o software com o qual os utilizadores seriam capazes de gerir os seus tokens Libra, e potencialmente também outros tokens futuros que a rede ou contratos inteligentes pudessem vir a emitir. De acordo com o white paper, os utilizadores do Facebook poderiam usar os tokens Libra para pagamentos online usando a carteira da Calibra com taxas “baixas ou nenhuma”. O white paper indica que a Libra seria um token estável, apoiado por um cabaz de várias moedas fiat. Os elementos-chave da rede Libra, como anunciado no white paper de 2019, são:

Infraestrutura, Consenso e Contratos Inteligentes: a Libra funcionaria numa ledger permissionada/federada distribuída que não usa uma “cadeia de blocos” como mecanismo de segurança. Somente os membros da rede poderiam validar as transações. A segurança seria proporcionada pelo facto de todos os membros da rede serem conhecidos e terem celebrado contratos legalmente vinculativos onde os maus atores pudessem ser processados por lei. A rede poderia, portanto, usar um algoritmo de consenso mais eficiente, LibraBFT, um fork do protocolo de consenso “HotStuff”, que é uma versão modificada do Practical Byzantine Fault Tolerance (BFT). O protocolo oferece capacidades de contrato inteligentes. “Move” é a linguagem de programação que foi inventada para o protocolo. Semelhante ao Ethereum, os contratos inteligentes da Libra exigiriam pagamentos de rede (gás) para a execução do código. Isto significa que todas as operações requereriam pagamentos de tokens Libra para taxas de transação de rede, o que também funcionaria como uma fonte de rendimento para validar os nós.

Governança da Rede: inicialmente, a Associação Libra, com sede na Suíça, tinha cerca de 30 membros fundadores, todos eles instituições já estabelecidas, desde redes de pagamento tradicionais (Mastercard, Visa, Paypal) até empresas de plataformas de Internet (Uber, Lyft, eBay), empresas de Blockchain (Xapo), VCs (Thrive Capital, Andreessen Horowitz) e NPO’s, tais como Women’s World Banking e Mercy Corps. Uma supermaioria de 2/3 seria necessária para mudanças de protocolo. O plano inicial era a transição de uma rede federada (associação) para uma rede pública baseada em Proof-of-Stake dentro dos primeiros cinco anos.

Governança On-chain: tal como a “Tezos”, o protocolo está sujeito a revisão. Os membros fundadores da rede Libra teriam um segundo conjunto de tokens, o token de investimento Libra, que concederia direito de voto na rede. Os tokens de investimento da Libra seriam necessários para votar nas mudanças de governança do protocolo. Tais mudanças de governança, na forma de atualizações do protocolo, seriam essenciais para (i) adicionar novos membros e (ii) fazer a transição da LibraBFT para um protocolo público Proof-of-Stake.

Ledger descartável: semelhante a “Coda”, a ledger é descartável. Os nós só precisam de fornecer uma prova do último bloco para garantir que estão a interagir com uma ledger válida. Esta é uma característica importante do ponto de vista da usabilidade, uma vez que os dados históricos podem, com o tempo, crescer para além da quantidade que pode ser tratada, em particular por pequenos dispositivos.

Token Estável Colateralizado: o token Libra não estava projetado para ter um propósito definido nem cunhado através de prova de contribuição na rede. Seria um simples token estável colateralizado por um cabaz de ativos. Similar a outros tokens estáveis com garantia de ativos, como o Tether, os tokens seriam emitidos e queimados regularmente em resposta às mudanças de procura por sua reserva e para manter a taxa de câmbio estável. Este é um pré-requisito para que qualquer token seja útil como meio de troca, e uma grande vantagem para outros tokens, como bitcoin, que não possuem mecanismos embutidos de estabilidade de preço. Curiosamente, Libra foi um dos poucos projetos de token estável a anunciar previamente o que a reserva faria: investir em títulos de baixo risco para gerar juros de custos e retornos. A carteira Calibra anunciou taxas de transação baixas, mas não mesma economia do seu token. A questão de manter a promessa em momentos de alta carga ficava ainda por responder.

Privacidade: no white paper, é dito que, “O protocolo Libra não conecta contas a uma identidade do mundo real. Um utilizador é livre para criar várias contas gerando vários pares de chaves. As contas controladas pelo mesmo utilizador não têm um link inerente entre umas e outras”. Este pseudónimo para utilizadores é similar a como a Bitcoin e Ethereum funcionam. A carteira Calibra, no entanto, requer que todos os utilizadores sejam verificados através de identificação emitida pelo governo. Não ficou claro se seria possível executar outras aplicações de carteira na rede Libra que não obedecessem aos mesmos requisitos AML/KYC (Anti Money Laundering / Know Your Customer).

O token Libra não pode ser comparado ao Bitcoin ou a outros tokens de protocolo nativo de redes Blockchain não-permissionadas, uma vez que (i) baseia-se numa solução federada, o que significa que não é não-permissionada, e o facto de (ii) muito provavelmente ter requisitos rigorosos de KYC/AML. Do lado positivo, a infraestrutura permissionada permite uma maior (i) escalabilidade, e (ii) o Facebook já tem uma base de utilizadores de mais de 2 biliões de pessoas, o que tornaria os tokens compatíveis com o que provavelmente seria uma carteira de fácil utilização, uma vez que o Facebook tem poder de desenvolvimento suficiente para fazer com que a tão necessária usabilidade da carteira aconteça.

Se implementada, a rede Libra poder-se-ia tornar um fornecedor de Fintech e, como tal, um concorrente sério para os atuais fornecedores de serviços financeiros, que cobram dos comerciantes e clientes taxas de remessa consideráveis, até 2,5% ou mais numa transação. Além disso, a Libra poderia ameaçar a existência das atuais empresas de transferência de dinheiro que cobram taxas de liquidação ainda mais altas, e que muitos imigrantes em todo o mundo utilizam diariamente para enviar dinheiro aos membros da família nos seus países de origem. Para o bem ou para o mal, a Libra, atualmente DIEM, tem o potencial de se tornar um banco paralelo, pelo menos para os 2 biliões sem acesso a bancos em todo o mundo.

 O problema é que a rede pode não se tornar tão soberana e descentralizada como a associação Libra alega que se tornará a longo prazo. A rede Libra é mais provavelmente uma tentativa do Facebook e dos outros membros federados da rede de entrar em duas novas indústrias através da back door das carteiras da Web3: identidades digitais e bancos. Dado que o Facebook, ao lado da Google, é o maior fornecedor de tecnologia, o token Libra poderia ser usado para incentivar o consumo futuro de publicidade, semelhante ao que o Basic Attention Token (BAT) está a tentar fazer, revertendo os papéis numa indústria de publicidade altamente intermediada ou como Steemit está a tentar incentivar contribuições para a rede.

Os anúncios da Libra criaram um grande furor em 2019, mas não foram bem-recebidos pela maioria dos reguladores em todo o mundo e estimularam um considerável impulso regulatório retrocedente. Em outubro de 2019, PayPal, Visa, MasterCard e Stripe deixaram de apoiar o projeto, pelo menos temporariamente. Até mesmo o Facebook anunciou que iria abandonar o desenvolvimento do projeto se ele não “progredisse o suficiente” com os reguladores, que parecem temer que o token Libra pudesse ser usado para (i) atividades ilegais, (ii) tornar-se um banco paralelo, (iii) privatizar dinheiro, e também (iv) minar a privacidade do utilizador.

Apesar deste recuo, o espaço criptográfico afastou-se de palavras como “blockchain” e “smart contracts” para o tema dos tokens. O playground para super nerds, cripto-anarquistas e especuladores deu oficialmente um grande passo em direção à tokenização da economia. Um estudo conduzido pelo Banco de Compensações Internacionais concluiu que, desde os anúncios do projeto Libra, muitos bancos centrais que antes estavam relutantes em relação à emissão de Moedas Digitais de Banco Central (CBDC) estão agora a investigar opções de tokenização das suas moedas, já que o sistema de compensações instantâneas da Libra teria sido uma ameaça considerável para o atual sistema bancário global.

No momento de escrita da segunda edição deste livro, alguns dos membros restantes da federação Libra, como Anchorage, Bison Trails, Coinbase Ventures, Andreessen Horowitz e Mercy Corps, anunciaram que fariam parte da “Celo Alliance“. Com 50 membros fundadores, a Celo é uma coligação semelhante ao consórcio Libra, com o objetivo de “prestar ajuda humanitária, facilitar pagamentos e possibilitar micro empréstimos” com um token estável indexado ao Dólar chamado “Celo Dollar” (cUSD), cujo lançamento aconteceu em meados de 2020.

Aproximadamente na mesma época, em março de 2020, a Libra anunciou que a carteira Calibra afastar-se-ia, pelo menos temporariamente, da ideia original de apoiar o token Libra com um cabaz de moedas fiat. Em vez disso, a federação Libra anunciou que está a planear lançar diferentes moedas fiat  Foi assim que surgiu a DIEM, uma rede de pagamentos global que deverá ser lançada em 2021. Após muito escrutínio regulamentar internacional, o Diem foi revisto para incluir um cabaz de moedas estáveis de moeda única, para além da sua moeda de múltiplas moedas, XDM. Em dezembro de 2020, o projeto foi rebatizado de Libra para Diem, representando um “novo dia” para o projeto. A Rede Diem funcionará utilizando a Blockchain Diem, uma nova Blockchain concebida para ser altamente expansível, segura e flexível. De acordo com o seu white paper, a missão do projeto é desenvolver uma infraestrutura financeira que “capacita milhares de milhões de pessoas”.

A Rede Diem é um projeto da Associação Diem, uma associação independente sem fins lucrativos cujos membros fundadores incluíam o gigante dos meios de comunicação social Facebook, processadores de pagamentos Mastercard e PayPal, empresas de criptografia e Blockchain Coinbase e Bison Trails, e a empresa de capital de risco Andreessen Horowitz, entre outras entidades financeiras, tecnológicas e sem fins lucrativos. No entanto, vários membros fundadores deixaram desde então a associação devido a escrutínios regulamentares, incluindo a PayPal e a Mastercard.

O Facebook, embora partilhe agora a governação com os outros membros da associação, tem estado altamente envolvido no desenvolvimento do projeto. Em junho de 2019, o Facebook anunciou que tinha formado uma nova filial, Calibra – que desde então mudou o seu nome para Novi – para desenvolver a infraestrutura de front-end de acesso à Diem, começando com uma carteira digital que será integrada em aplicações do Facebook.

De acordo com o seu white paper, Diem procura criar uma rede de pagamentos aberta, distribuída e global, a fim de apresentar um sistema de pagamentos mais inclusivo e inovador que possa ser facilmente acessível a partir de dispositivos móveis. Pretende lançar uma série de moedas estáveis que formam a espinha dorsal da “Internet do dinheiro”, incluindo tokens indexados ao dólar americano, ao euro, à libra esterlina e ao dólar de Singapura. O projeto planeia também emitir um token multi-moeda, XDM, que é um composto das suas moedas de divisa única.

 

Para atingir este objetivo, Diem está a construir uma nova cadeia de blocos chamada Diem Blockchain que se baseia na Move, uma linguagem de contrato inteligente recentemente criada que foi concebida para evitar que os bens digitais sejam clonados. Diem antecipa que a sua cadeia de bloqueio será capaz de servir milhares de milhões de utilizadores.

 

A Associação Diem recebe financiamento sob a forma de contribuições dos seus membros, sendo cada membro fundador obrigado a pagar uma taxa de filiação de 10 milhões de dólares. Como tal, grande parte do seu plano de negócios está centrado em trazer novos membros a bordo e assegurar que os membros existentes renovam o seu envolvimento. A Associação Diem espera encorajar um processo de candidatura aberto em que os potenciais membros concorram entre si por um número limitado de vagas de membros.

A Diem não terá um supply fixo de tokens. Pelo contrário, os seus tokens estáveis serão cunhados e queimados pela Diem conforme necessário em resposta à procura do mercado, e cada ficha será apoiada por uma reserva de ativos líquidos. De acordo com a associação, pelo menos 80% da reserva será constituída por títulos públicos “de muito curto prazo”, enquanto os restantes 20% serão constituídos por dinheiro.

 

XDM, o token multi-moeda da Diem, será gerido por um contrato inteligente que combina cada moeda única estável com base em pesos nominais fixos pré-determinados. Diem declarou que isto pode resultar na flutuação do valor do XDM em relação às moedas fiat locais.

No que toca à segurança, a Rede Diem será assegurada através de um mecanismo de consenso baseado no Byzantine Fault Tolerance chamado “LibraBTF”, segundo o qual dois terços de todos os validadores devem concordar que uma transação é correta para que seja acrescentada à Blockchain. Os nós validadores serão operados pelos membros da Associação Diem, que são obrigados a demonstrar a sua capacidade tecnológica para operar um nó validador quando se candidatam à adesão. A rede terá também uma segunda camada composta por nós completos operados publicamente que reproduzem e revalidam transações quando sincronizadas com o estado atual da Blockchain.

 

O protocolo da Blockchain Diem, Diem Core, é de código aberto, o que significa que qualquer pessoa será capaz de auditar independentemente a sua segurança e proteção.

 

Como entidade centralizada, a Associação Diem irá operar uma unidade de inteligência financeira para monitorizar a rede em relação a quaisquer atividades ilegais ou nefastas, e comprometeu-se a trabalhar tanto com a aplicação da lei como com fornecedores de serviços de Internet para combater qualquer utilização indevida da plataforma.

A ideia do projeto Basic Attention Token é de monetizar a atenção dos utilizadores e de criar um mercado publicitário mais transparente e eficiente. O Basic Attention Token inverte os papéis dos intervenientes na indústria publicitária, e redefine a questão de quem é dono da sua atenção e da sua experiência de navegação na web, e quem é pago, porquê e a partir de quem.

Historicamente, as transações económicas eram, na sua maioria, baseadas na troca de produtos por dinheiro, dívida ou outros produtos. A escolha era limitada e as expectativas dos clientes relativamente baixas. Devido à escassez de bens, os produtores não precisavam personalizar o seu produto ou diferenciá-lo de outros produtos. A revolução industrial (1860-1920) reduziu os custos de produção, alterando a dinâmica entre a oferta e a procura de bens. À medida que a produção começou a superar a procura, os mercados tornaram-se cada vez mais competitivos, os produtos mercantilizaram-se e as vendas e o marketing tornaram-se uma forma das empresas diferenciarem os seus produtos da concorrência. O que se seguiu foi uma revolução nas vendas (1920-1940). Seguiu-se uma revolução de marketing (1940-1990), que então levou às revoluções de marketing mais sofisticadas do final do século XX e início do século XXI, com foco no marketing de relacionamento e no marketing das médias sociais. Os acordos de livre comércio e o surgimento da Internet permitiram às empresas externalizar cada vez mais a produção e serviços para outros países e concentrar-se no design de produtos, na criação de marcas e na publicidade.

Pela primeira vez desde a revolução agrícola, os humanos estão a aproximar-se de um estágio onde existe uma abundância de recursos como comida, dinheiro e conhecimento. A maioria das carências dos tempos modernos é devida a ineficiências de alocação, e raramente são produto de carências reais. Na era do excesso de informação, otimização das cadeias de abastecimento e mecanismos algorítmicos de mercado, essa ineficiência pode ser ainda mais reduzida. Enquanto a invenção da imprensa gráfica no século XV pode ser vista como a primeira revolução da informação, o surgimento da Internet trouxe a segunda revolução da informação, e com isso, a abundância de informação. Os dados tornaram-se o combustível desta economia da informação, e a atenção é o recurso escasso. À medida que nos aproximamos de uma “sociedade de custo marginal zero”[1] , o tempo e a atenção estão a tornar-se dois dos recursos mais escassos. A quantidade de tempo que uma pessoa tem para prestar atenção à publicidade é limitada.

 

Economia da Atenção, Mercado dos Dados e Privacidade

As plataformas Web2, em particular as plataformas de redes sociais e motores de busca, não tinham um modelo de negócio direto para gerar receitas a partir dos serviços que prestavam. A única coisa que tinham eram dados dos utilizadores, que serviam de base para publicidade direcionada baseada no comportamento dos utilizadores. Isto revolucionou para sempre a indústria publicitária. O atual ecossistema ad-tech foi desenvolvido e predominantemente controlado por duas empresas: Alphabet (Google) e Facebook. Desde o histórico de navegação na web até dados baseados em localização, o nosso movimento diário está a ser rastreado pelas empresas cujos serviços usamos, e depois revendido para os corretores de dados da indústria de marketing. Os corretores de dados analisam e revendem esses dados aos anunciantes. Os métodos algorítmicos extraem informações desses dados brutos para avaliar quais os clientes mais relevantes para determinado anunciante. Os utilizadores de hoje têm pouco ou nenhum controlo direto sobre o que acontece com os seus dados pessoais por detrás dos jardins murados dos servidores dos fornecedores de serviços Web2.

Coletar listas de pessoas que agrupam consumidores por características específicas e vender essas listas a empresas de marketing e anunciantes não era uma coisa nova. A Internet, entretanto, reduziu radicalmente os custos de coleta e processamento dessas listas, e permite fazê-lo a um nível muito mais personalizado. Juntamente com as aplicações de machine learning, podemos agora personalizar a publicidade a um nível sem precedentes, que antes não era viável. Nos primeiros anos de publicidade direcionada, os marketers que usavam o Facebook, Google e redes de publicidade similares só podiam visar indivíduos com base nos dados coletados por um único fornecedor de serviços. Em 2012, no entanto, o Facebook começou a permitir que as empresas carregassem suas próprias listas, correlacionando os seus dados com os dados do Facebook. Isso permitiu às empresas vincular conjuntos de dados de diferentes fontes e direcionar as pessoas com base nos seus endereços de e-mail ou números de telefone. Outras empresas, como a Google e o Twitter, logo lançaram recursos semelhantes. Métodos sofisticados foram desenvolvidos para traçar o perfil do comportamento dos utilizadores da Internet, ligando conjuntos de dados recolhidos por diferentes empresas através de diferentes contas de utilizadores, dispositivos e, por vezes, até dados off-line. Esses conjuntos de dados podem ser facilmente ligados usando identificadores pseudónimos referentes a indivíduos, como endereços de e-mail, números de telefone e cookies. Os cookies são uma ferramenta poderosa que os editores usam para rastrear e vincular as preferências e o comportamento dos indivíduos através dos serviços da Internet.

Além disso, na atual Internet baseada no cliente-servidor, tanto os utilizadores como os anunciantes têm pouco controlo direto sobre o que acontece com os seus dados. Grandes empresas de dados são uma incubadora para violações de dados e de privacidade, como se tornou publicamente evidente com os “Cambridge Analytica Files“, em que os dados do Facebook foram usados para manipular as eleições britânicas e americanas[2]. Anúncios direcionados combinados com feeds de dados personalizados são vistos por muitos como uma ferramenta para minar a autonomia dos utilizadores, potenciado a criação de “Câmaras de Eco” da sua própria opinião. Milhões de utilizadores instalaram ad-blockers nos seus dispositivos para contrariar esta tendência de vigilância. Os editores reagiram bombardeando os utilizadores com pop-ups e mensagens pedindo-lhes para colocar os websites na “whitelist” ou desativar completamente o seu ad-block. Mais de 600 milhões de dispositivos parecem estar atualmente a usar um qualquer software de ad-block.

A indústria publicitária é também propensa a intransparências ao longo da cadeia de fornecimento destes corretores de dados e prestadores de serviços. Fornecedores de tecnologia sem escrúpulos e por vezes fraudulentos fingem entregar publicidade direcionada, quando na realidade, os utilizadores podem receber um anúncio de produtos que compraram recentemente. Os anunciantes que compram tais “públicos personalizados” não têm uma visão direta do que realmente acontece por detrás dos jardins murados dos fornecedores de ad-tech. Eles têm de confiar na maneira como os fornecedores terceiros disponibilizam os seus anúncios. Estima-se que, em 2016, foram cometidos mais de 7 biliões de dólares em fraudes com anúncios on-line, desde anúncios equivocados até anúncios maliciosos.

 

Basic Attention Token (BAT)

A publicidade digital envolve atualmente dois players principais, os anunciantes e os editores, e muitos serviços intermediários que foram estabelecidos para servir as necessidades dos anunciantes e editores. Os utilizadores não têm quase nenhum papel ativo no sistema, exceto talvez pela possibilidade limitada de opt-out. O projeto Basic Attention Token inverte os papéis dos players da indústria publicitária e redefine a questão de quem é dono da sua atenção e da sua experiência de navegação na web, e quem é pago pelo quê, e por quem. O Basic Attention Token fornece soluções tokenizadas para os desafios atuais da indústria. A ideia é usar tokens criptográficos e um navegador que preserva a privacidade para criar um sistema de publicidade descentralizado. A publicidade é realizada P2P, diretamente no navegador Brave”, uma aplicação descentralizada que se comunica com a rede Ethereum e que gere dois tokens: BAT (Basic Attention Token) e BAM (Basic Attention Metrics).

O token BAT pode ser utilizado como transferência de valor entre editores, anunciantes e utilizadores de forma que (i) os utilizadores sejam compensados pela visualização dos anúncios de uma forma que preserve a privacidade, (ii) os editores recebam uma parte maior das receitas dos anúncios do que receberiam atualmente, e (iii) os anunciantes possam obter um melhor retorno do investimento, bem como dados mais precisos. Os utilizadores podem optar por não ver quaisquer anúncios, ou por ver certos anúncios de empresas em que estão genuinamente interessados, recebendo tokens BAT em troca.

Basic Attention Metrics (BAM) permite o rastreamento e relatório precisos da atenção do utilizador diretamente no navegador. Apesar do navegador rastrear constantemente a atenção, estes dados são anónimos, pois nunca deixam o software do navegador correr localmente no seu dispositivo. Algoritmos de machine learning no dispositivo determinam o conteúdo relevante para publicidade personalizada. O “valor de atenção” para cada anúncio depende de quanto tempo o anúncio é visto e outras métricas, tais como o número de pixels do anúncio que são visíveis em proporção ao conteúdo relevante. A análise de dados é realizada diretamente no navegador para veicular publicidade direcionada sem revelar os dados básicos à empresa que entrega o anúncio (anunciante). Os anunciantes têm acesso direto a métricas confiáveis sem a necessidade de rastreamento por terceiros e sem comprometer a privacidade do utilizador. Tal nível de desintermediação pode melhorar a eficácia da publicidade direcionada.

O livro relata 13 milhões, mas no site do Brave, à data de março de 2021, já ultrapassa os 25 milhões de utilizadores ativos mensais que o usam para navegar na web, para gerir os seus tokens e realizar outras operações. Ao contrário dos navegadores atuais, o bloqueio de anúncios está incorporado no navegador Brave usando a rede Tor. Tal bloqueio torna também o navegador mais rápido. Além disso, o navegador brave oferece mais segurança incorporada, pois atualiza sites que não têm HTTPS para usar o protocolo HTTPS. A privacidade não é uma extensão opcional do navegador que precisa ser instalada manualmente. O navegador também fornece um painel de análise para monitorizar e gerir recursos como programas de incentivo, algoritmos de correspondência de anúncios e sistemas de medição da atenção.

Há quem argumente que serviços baseados na nuvem, como micro-servers de dados pessoais, como o Hub of All Things”, já oferecem a possibilidade de transferir o controlo sobre dados pessoais de volta para os clientes individuais, onde os utilizadores podem configurar a sua própria infraestrutura de armazenamento de dados pessoais. No entanto, eles continuam a ser um fenómeno marginal. Embora tais serviços ofereçam mais controlo sobre o local onde os dados são armazenados, ainda é preciso contar com terceiros para serviços de gestão de identidade e hospedagem, o que não oferece o mesmo nível de autonomia e segurança das soluções de Blockchain, como o BAT.

Como funciona o BAT em detalhe: qualquer pessoa que descarregue o aplicativo recebe uma quantidade inicial de tokens BAT. Os anunciantes pagam aos editores tokens BAT para exibir anúncios personalizados, que são filtrados pelo algoritmo do navegador Brave, com base apenas nos dados coletados localmente. Isso significa que os utilizadores mantêm a propriedade e o controlo sobre os seus dados. Ao entregar um anúncio, os anunciantes enviam os tokens BAT num estado bloqueado usando um contrato inteligente. Se e quando os utilizadores visualizam os anúncios, o contrato inteligente desbloqueia os tokens BAT, que compensam o utilizador com até 70 por cento da receita de publicidade. A editora que hospeda o anúncio recebe o resto, o que poderia incentivá-los a fornecer conteúdo de qualidade relevante em vez de spam com anúncios irrelevantes. Os utilizadores podem ser compensados pelo seu tempo e atenção e, por sua vez, gastar estes tokens noutras atividades online, tais como dar gorjetas a artistas e criadores de conteúdo online gratuito.

Esta opção de “gorjeta” funciona de forma semelhante a serviços como o Patreon, mas elimina a necessidade de serviços de terceiros, como o Patreon. Também se poderia usar tokens BAT para pagar subscrições, bens digitais e outros serviços no futuro. No momento de escrita do livro, os tokens BAT podem ser usados para doações de caridade para mais de 1000 organizações, como a Cruz Vermelha ou o World WildLife Fund. A Brave Software Inc. estabeleceu uma parceria com a TAP Network, uma empresa de tecnologia de recompensas-como-serviço, que tem mais de 250.000 parceiros comerciais como a Amazon, Apple, Walmart, American Airlines, Starbucks e HBO. Os utilizadores também poderão resgatar seus tokens BAT para recompensas de qualquer uma dessas empresas, o que pode ser um incentivo adicional para os utilizadores adotarem o Brave e o BAT. Além disso, existem mais de 28.000 editores com certificação Brave onde os tokens BAT também são aceites, tais como Vimeo, Vice, Washington Post, The Guardian e MarketWatch.

 

Perspetivas e Desafios

As soluções de publicidade baseadas na Web3 proporcionam mais transparência para os editores sem comprometer a privacidade do utilizador. Devido à natureza de código aberto desta solução, o software do navegador pode ser auditado e todas as transações são passíveis de verificação pública. A natureza de código aberto pode tornar os sistemas mais resistentes e reduzir as fraudes. No entanto, há também alguns desafios que precisam ser resolvidos antes que o BAT possa alcançar a adoção em massa no mercado.

Ao contrário da Steemit, o BAT é uma solução centralizada, pelo menos no que diz respeito à sua economia token e respetiva governança. Enquanto o STEEM e o Steem Power são tokens que são cunhados com base em provas de contribuição para o ecossistema Steem, o token BAT está vinculado a moedas fiat. Os tokens BAT não são cunhados mediante prova de determinado comportamento, tendo sido inicialmente financiados com dinheiro fiat numa venda de tokens. O fluxo de tokens e a criação de valor no modelo BAT parecem refletir modelos de criação de valor ultrapassados e são baseados num conjunto de tokens BAT pré-minerados. Os fundadores e gestores do Brave decidem quantos tokens são emitidos e como funciona o fluxo de tokens: após uma injeção de capital privado de VCs, o projeto BAT realizou uma venda de tokens em 2017, que terminou em 30 segundos, levantando cerca de 35 milhões de USD (156.250 ETH). No total, foram criados 1,5 biliões de tokens, sendo 1 bilião vendido na venda de tokens, e os tokens restantes retidos. A equipe Brave recebeu 200 milhões para financiamento de desenvolvimento futuro (BAT development pool), e 300 milhões serão doados gratuitamente em vários lotes, por ordem de chegada, quando os utilizadores fizerem o download do navegador (user growth pool). Os primeiros pagamentos começaram em dezembro de 2017. A user growth pool ainda detém cerca de 250 milhões de BAT. Quanto à distribuição de tokens, os cem primeiros possuem 72% de toda a oferta de tokens.

O projeto BAT ainda está em fase inicial de implementação e muitos recursos estão em desenvolvimento. É necessário desenvolver mecanismos anti-fraude para limitar a quantidade de anúncios veiculados por utilizador. Isto é um desafio, pois qualquer pessoa poderia abrir qualquer número de carteiras em diferentes dispositivos. Além disso, para que os levantamentos de tokens estejam em conformidade com as autoridades reguladoras, certos mecanismos KYC (“conheça o seu cliente”) serão provavelmente necessários, especialmente à luz da legislação AML (“anti-lavagem de dinheiro”). A carteira é atualmente unidirecional; os tokens não podem ser levantados. Os utilizadores precisam de utilizar serviços de terceiros para converter o dinheiro fiat em BAT e vice-versa. Isto é provavelmente uma restrição de curto prazo e será eventualmente resolvida à medida que o sistema amadurecer.

Pode ser difícil motivar os utilizadores a mudar para um novo web browser como o Brave, uma vez que as quotas de mercado dos browsers têm sido historicamente bastante estáveis. No entanto, ao contrário dos browsers tradicionais, o Brave oferece características de privacidade e possibilidades de receita. A oportunidade de ganhar dinheiro ao ver anúncios, ao mesmo passo prometendo um nível de privacidade sem precedentes, pode mudar a dinâmica no mercado de navegadores. Uma vez que todas as funcionalidades do Brave estejam totalmente implementadas e operacionais, pode ser atraente o suficiente para os utilizadores passarem pelo esforço de instalar uma nova peça de software nos seus dispositivos.

No entanto, os anunciantes podem ser o maior fator de estrangulamento para a adoção de BAT. A Google e o Facebook dominam atualmente a indústria de tecnologia avançada, com uma quota de mercado estimada em cerca de 70 por cento. A sua alargada base de utilizadores torna-os populares entre os anunciantes e editores. Enquanto eles oferecem opções de anúncios em linha com seus resultados de feeds ou pesquisas, BAT atualmente oferece apenas anúncios de exibição, o que não é tão atraente para os anunciantes. O projeto BAT tem em seu roteiro a implementação do uso do BAT além dos casos de uso de publicidade, para qualquer transferência de valor dentro do navegador. Se eles serão capazes de ter sucesso na implementação deste plano, tal ainda não está claro.

 A longo prazo, é provável que o ecossistema BAT ou um token de atenção semelhante se torne um método de micropagamentos nas redes sociais, não só para pagamentos de publicidade, mas também para recompensar a criação e curadoria de conteúdos. Além do BAT, outros projetos estão a desenvolver soluções similares, como o AdEx, um projeto que se concentra em anúncios de vídeo.

[1] “Zero Marginal Cost Society” é o título de um livro de Jeremy Rifkin, que descreve como as tecnologias emergentes estão a conduzir-nos a passos largos para uma era de bens e serviços quase gratuitos, precipitando a ascensão meteórica de um fenómeno global chamado “Collaborative Commons”. O livro descreve o paradoxo do capitalismo se ter tornado tão eficiente que se está a abolir a si próprio. Embora os economistas sempre tenham promovido uma redução do custo marginal, provavelmente não anteciparam a possibilidade de uma revolução tecnológica que poderia trazer custos marginais próximos de zero, quase livres e abundantes, e não mais sujeitos às forças do mercado.

[2] Devido ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) que foi aprovado pela União Europeia, as práticas anteriores estão a tornar-se problemáticas em certas jurisdições. Um tratamento recente sobre as consequências da GDPR na análise de dados pode ser encontrado: Wieringa, J., Kannan, P.K., Ma, X., Reutterer, T., Risselada, H., e B. Skiera (2019): Data Analytics in a Privacy-Concerned World. Journal of Business Research (a publicar).

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Os Tokens de Curadoria de Registos fornecem um mecanismo de mercado para a curadoria de conteúdos que poderia complementar os serviços de curadoria centralizada. Os tokens são aqui utilizados como incentivos económicos para curadoria de listas, ou para classificarem em termos de ranking a informação numa tal lista, incluindo publicação de conteúdos numa rede social ou algoritmos de recomendação para plataformas de comércio eletrónico.

As listas e registos provaram ser uma ferramenta útil para organizar, classificar e compartilhar informações. Usamos listas para os nossos processos diários de tomada de decisão, tais como “melhores livros”, “melhores restaurantes”, “melhores universidades”, “tokens para investir”, “melhores filmes”, “melhores filmes clássicos”, “melhores filmes de terror”, “melhores produtos classificados de uma determinada categoria de uma plataforma de comércio eletrónico”, “melhor orçamento ou hotel de luxo numa região”. Estas listas ou registos podem ser privados ou públicos e são normalmente geridos de forma centralizada. Pode-se usar listas brancas ou listas negras para filtrar informações relevantes. Qualquer jornal ou revista é também uma lista com curadoria de informações relevantes. Seja uma notícia diária ou uma revista de moda, o conteúdo dessas publicações é cuidadosamente selecionado e classificado, destacando informações mais importantes na capa e nas primeiras páginas, e não no meio ou no fim. Tal filtragem é o resultado de um processo de curadoria de terceiros, o que é útil na medida em que os leitores poupam eles próprios muito tempo a pesquisar e a filtrar a informação. O processo de curadoria é terceirizado para os editores, que são confiáveis para curar com diligência.

Desde o surgimento da Internet, tais listas, rankings ou serviços de recomendação tornaram-se mais importantes. A Internet reduziu radicalmente os custos de publicação e compartilhamento de informações. Como resultado, tornou-se difícil filtrar informações significativas de todo o ruído on-line. As primeiras listas on-line eram sites que recolhiam e classificavam informações de outros sites para ajudar os utilizadores a procurar informações relevantes na web. Os primeiros “motores de busca” eram criados manualmente por pessoas que eram pagas para classificar o conteúdo online como se de livros nas prateleiras das bibliotecas se tratasse, mas este processo não era escalável. A pura carga de informação em si, desencadeou uma nova forma de criar listas públicas, aplicando (i) algoritmos de machine learning e (ii) sabedoria dos “crowd mechanisms” para derivar listas e classificações significativas. O Google foi um dos primeiros motores de busca a introduzir a pesquisa algorítmica, e o Tripadvisor introduziu soluções de “sabedoria das massas” para produzir uma lista para o “melhor hotel da região”, agregando uma coleção de recomendações pessoais. Essa curadoria de terceiros, seja pública ou privada, algorítmica ou baseada na sabedoria das massas, é propensa à censura e à manipulação, uma vez que são geridos de forma centralizada.

Os utilizadores de serviços online têm de confiar que a plataforma de internet que fornece tais serviços de curadoria age honestamente e esperar que a preferência coletiva por restaurantes ou hotéis se alinhe de acordo com as suas próprias preferências. Em listas geridas de forma privada, o proprietário dessa lista pode adicionar ou remover arbitrariamente membros da lista ou exigir pagamentos de pessoas que queiram ser listadas. Os seus métodos de classificação muitas das vezes não são divulgados, podem ser manipulados ou podem não coincidir com o gosto ou julgamento dos seus utilizadores. Listas públicas como o Tripadvisor também podem ser manipuladas por uma carga de utilizadores pseudónimos que fazem spam na lista, realizam classificações falsas ou engendram socialmente a lista. Para mitigar estes problemas de listas coletivamente curadas, os moderadores de listas semi-centralizadas são frequentemente nomeados para intervir manualmente, o que é um ponto de centralização e ,por tal, pouco escalável. O Facebook, por exemplo, externaliza a maior parte da sua moderação de curadoria manual de conteúdo para países de baixo nível de rendimento, como as Filipinas, para economizar custos.

Os métodos dos prestadores de serviços de curadoria e recomendação de terceiros são, na sua maioria, não revelados, resultando em algoritmos de filtragem intransparentes. As tarefas de curadoria envolvem a manutenção de listas brancas ou listas negras, a gestão de alimentação de dados, a filtragem de comentários ou o fornecimento de recomendações especificamente contextualizadas. Algoritmos de machine learning extrapolam sugestões correlacionando dados personalizados de utilizadores com dados estatísticos do comportamento de todos os outros utilizadores. Plataformas de comércio eletrónico, como eBay ou Amazon, usam machine learning para classificar os resultados da pesquisa e, uma vez selecionado um item de sua escolha, sugerir outros produtos que possam ser relevantes para o comprador. Os serviços de streaming de vídeo como o Netflix utilizam o machine learning para sugerir filmes que possam ser relevantes para o utilizador, enquanto as plataformas de música como Soundcloud ou Spotify sugerem listas de reprodução de música em função daquilo que se costuma ouvir. Plataformas de rede social, como Twitter, Facebook ou Instagram usam machine learning para classificar as publicações e anúncios no seu feed de dados. No entanto, apenas um punhado de empresas controla o processo de curadoria dos motores de busca, redes sociais e outros serviços digitais que usamos atualmente.

 

Como funcionam os TCR

Os Token Curated Registries (TCR) são um mecanismo de mercado introduzido por Mike Goldin para curar coletivamente as listas na ausência de coordenação de terceiros. Estes tokens fornecem um incentivo económico para curar listas que são valiosas para os consumidores. As transações são liquidadas e compensadas de forma autónoma através de uma ledger distribuída. Os TCR são concebidos para representar um bem público. Qualquer pessoa pode participar.

Pré-requisitos: para estabelecer um TCR, é necessário (i) definir um propósito para a lista, (ii) um token nativo, e (iii) um mecanismo de governança que assegure que todos os portadores de token sejam incentivados a manter uma lista de alta qualidade.

Intervenientes: (i) os candidatos fornecem conteúdo para a lista, (ii) os consumidores usam a lista e (iii) os curadores gerem coletivamente a qualidade da lista (portadores de tokens).

Processo: os candidatos têm de depositar uma certa quantidade de tokens para se candidatarem à lista. Qualquer detentor de tokens pode participar do processo de curadoria, e têm um certo tempo para votar se a candidatura deve ou não ser incluída na lista. Se eles acharem que a inscrição deve ser excluída, podem contestar a lista. Para isso, eles devem fazer um depósito de uma certa quantidade de tokens num contrato inteligente, bloqueando uma parte da sua participação na rede. Uma vez iniciada uma contestação, todos os outros detentores de tokens podem votar também depositando seus tokens. Se no final do período de votação, o pedido for rejeitado pela maioria dos portadores de tokens, o depósito do requerente é dividido entre o oponente e todos os outros portadores de tokens que votaram para rejeitar o pedido. Caso contrário, a listagem do candidato é adicionada ao registo, e o contrato inteligente distribui o depósito do oponente entre o candidato e todos os detentores de tokens que votaram para aceitar a listagem. É aconselhável que os TCR dividam o processo de votação em duas fases, a fase de submissão e a fase de revelação. Os resultados só são transmitidos abertamente após a conclusão da fase de submissão para evitar “ataques de coordenação”, onde um curador poderia ter influência sobre o processo de votação de outros curadores. Os tokens são bloqueados na fase de submissão e desbloqueados durante a fase de revelação.

Token: os tokens são projetados para serem transferíveis e fungíveis (todos os tokens são projetados para serem iguais). Assume-se que cada lista necessita do seu próprio token para dar um sinal confiável da qualidade da lista e do valor da rede. O preço de um token é o resultado da oferta e procura e, como tal, é assumido como um indicador de desempenho para as ações coletivas de todos os portadores de token. Se um TCR aceitasse um token não nativo como meio de pagamento, como BTC ou ETH, o desempenho coletivo dos detentores do token não refletiria o desempenho da lista e, portanto, os mecanismos de incentivo económico não funcionariam.

Design do mecanismo: o mecanismo de incentivos precisa alinhar os incentivos para garantir que os detentores de tokens sejam recompensados por votarem verdadeiramente, e que as tentativas de enganar o sistema não sejam recompensadas. Assim, os candidatos que acreditam que serão rejeitados não são suscetíveis de se candidatarem; caso contrário, perderiam os seus tokens. Os portadores de tokens, por outro lado, poderiam teoricamente rejeitar todos os candidatos, mas isso colidiria com o seu interesse em aumentar o valor dos seus tokens. Uma lista vazia não é interessante para ninguém. A rentabilidade e a qualidade de todos os interessados precisam ser bem alinhadas, para que listas objetivas e de alta qualidade possam ser produzidas.

Pressupostos de design: o conceito de um TCR é baseado no pressuposto de que um mercado livre para listas poderia potencialmente fornecer um mecanismo melhor para a curadoria de qualidade das listas, do que listas e feeds de dados geridos centralmente. Supõe-se também que os atores económicos querem maximizar os seus lucros e agir racionalmente em todos os momentos. Assume-se que os candidatos têm interesse em ser incluídos na lista para fins publicitários e estão dispostos a pagar uma taxa de listagem, uma vez que a colocação numa tal lista serve como validação da qualidade dos seus serviços. Os curadores, que também têm uma participação na rede sob a forma de tokens de rede, ganhariam mais dinheiro com listas bem curadas e com muita tração, o que significa que eles têm um incentivo para curar a lista de forma verdadeira. O voto dos detentores de tokens é proporcional ao número de tokens que eles possuem, ou que apostam. Os direitos de voto proporcionais são baseados na ideia de que aqueles que têm mais em jogo são mais incentivados a agir no melhor interesse da rede. Os consumidores, por outro lado, buscam informações de alta qualidade e utilizam listas para tomar decisões. Se a qualidade da listagem for boa, os consumidores estarão interessados em consultar a listagem, o que tornará mais atraente para os candidatos a candidatarem-se e fortalecerá a economia geral dessa lista.

 

Vetores de Ataque

A economia por detrás do registo precisa de ser concebida de forma a contabilizar todos os vetores de ataque possíveis. Foram identificados vários vetores de ataque, como “trolling“, “madman attacks“, “registry poisoning” ou “coin flipping“. Uma solução para cada um desses ataques potenciais precisa ser refletido nas regras de governança do TCR para garantir listagens de alta qualidade.

Os Trolls podem tentar adicionar conteúdo à lista que não satisfaça os critérios da lista. Tal trolling também acontece em plataformas Web2 atuais, como a Amazon, onde adicionar reviews não custa nada, exceto pelo trabalho de escrever o review. Como solução, o mecanismo precisa ser projetado de forma a tornar caro um troll adicionar listagens de baixa qualidade. Perder uma taxa de listagem depositada é um mecanismo desse tipo. Mas mesmo que a taxa de listagem seja alta o suficiente para a maioria dos utilizadores, um atacante com razões não económicas, ou um atacante com muitos fundos à sua disposição, ainda pode ser capaz de inundar o sistema com listas não relevantes. Poder-se-ia aumentar o depósito mínimo, o que poderia excluir candidatos elegíveis com poucos fundos à sua disposição para solicitar uma listagem, criando assim uma barreira económica à entrada no sistema.

Registry poisoning refere-se ao problema do que acontece com uma listagem que a determinada altura foi aceite por boas razões, mas a qualidade dos seus serviços tem diminuído desde então, de modo que eles não correspondam mais aos requisitos da lista. O mecanismo precisa ser concebido de forma a incentivar os detentores de tokens a encontrar e desafiar as listas que “envenenam” o registo.

Free riding: os detentores de tokens podem decidir livremente circular no sistema e não participar ativamente em nenhum dos processos de votação, esperando que outros detentores de tokens mantenham a qualidade da lista e, portanto, também o valor dos seus tokens.

Coin flipping: não há penalidades diretas por tomar más decisões, apenas indiretas a longo prazo que possam refletir-se no preço do token quando a qualidade da lista baixar. Um detentor de tokens que tenha como objetivo a maximização do lucro pode achar mais racional, a curto prazo, emitir um voto aleatório (moeda ao ar) em vez de investir tempo em avaliações racionais sobre uma possível lista. Presume-se que uma certa distribuição de votos entre “moeda ao ar” e “detentores verdadeiros de tokens ” pode manter a integridade da lista apesar de tal comportamento de coin flipping. No entanto, se muitos curadores decidirem aproveitarem-se do sistema através do coin flipping, a qualidade da lista pode ser posta em risco.

Madman Attack: refere-se a uma potencial tentativa de manipulação de alguém que possa ter uma razão económica para comprometer a qualidade da lista, na qual gastam uma grande quantidade de fundos para inundar o registo com listas de baixa qualidade (ataque de 51 por cento). O mecanismo precisa ser projetado de forma a tornar caro um ataque de 51 por cento. No entanto, dados os potenciais problemas de “free-rider“, apenas uma minoria de detentores de tokens é suscetível de participar ativamente na votação a favor e contra das propostas, o que significa que, na realidade, os madman attacks podem não ser tão caros como um ataque teórico de 51 por cento de todos os detentores de tokens.

Vote memeing refere-se ao facto de alguns detentores de tokens poderem copiar o comportamento do grupo no interesse de estar sempre no bloco de votação maioritário, ficando assim do lado vencedor e ganhando sempre tokens. Para evitar isso, foram introduzidos esquemas de revelação de votos para garantir que os votos de outros só serão revelados após o término do período de votação.

 

Críticas ao TCR

Token Curated Registries podem ser uma mudança de paradigma se eles conseguirem fornecer uma alternativa resistente à manipulação relativamente aos serviços de curadoria centralizados. No entanto, os críticos argumentam que os TCR que usam votos ponderados por token (i) não podem fornecer diferentes nuances de curadoria, (ii) não podem substituir sistemas de reputação subjetiva, e (iii) têm um problema com o tamanho da “economia mínima”. Eles afirmam que o simples facto de se deter uma participação no sistema não é condição base para criar uma curadoria de qualidade, pois os detentores de tokens têm maior probabilidade de maximizar os lucros a curto prazo, uma vez que podem vender os seus tokens a qualquer momento e sair do sistema, o que é prejudicial para a qualidade coletiva da lista a longo prazo. Além disso, qualquer TCR precisará de um tamanho mínimo de mercado para resistir a tentativas de manipulação, o que significa que as novas listas têm um problema de “galinha e ovo”. Além disso, os consumidores não estarão interessados num registo pequeno ou meio vazio, e os candidatos não estarão interessados em se candidatarem a um registo que não seja visitado por ninguém. Outra questão é que os TCR não são úteis para todos os tipos de registos. Bulkin, por exemplo, é um crítico franco e faz a distinção entre “TCR subjetivos” e “TCR objetivos”. Na sua opinião, um TCR só pode ser bem-sucedido se (i) existir uma resposta objetiva à questão da lista e se (ii) a resposta for publicamente observável, como a temperatura do ar numa determinada área geográfica.

Bulkin critica que o voto baseado em tokens não resulta necessariamente numa curadoria de maior qualidade para listas subjetivas, além de ser afetado por assimetrias de poder entre os pequenos e grandes detentores de tokens, especialmente se os TCR puderem ser adquiridos com dinheiro, e não com reputação. Para acabar no lado vencedor, os portadores de tokens provavelmente serão incentivados a votar nas escolhas em que acreditam que a maioria dos portadores de tokens, ou o grande portador de tokens, votará. Bulkin afirma que perguntas subjetivas não podem ser respondidas com precisão por um mecanismo objetivo, como proposto por Goldin. Listas que são propensas a gostos ou opiniões subjetivas precisam de um sinal de coordenação mais forte, o que exigiria um conjunto bem definido de curadores com valores bem alinhados. Em tal conjunto, é importante confiar nas pessoas que curam a informação e compreender os seus motivos. Para listas subjetivas de qualidade, Bulkin sugere que combinar TCR com sistemas de reputação social poderia acrescentar o contexto necessário a um TCR. Como pessoas diferentes têm valores sociais diferentes, adicionar o contexto do valor social é importante na curadoria de certos tipos de listas. Ele argumenta também que é mais provável que as pontuações de reputação sejam distribuídas uniformemente do que a riqueza, e que os TCR são mais fáceis de “dar o salto” quando incluídos num sistema de reputação subjetiva, o que resolveria o problema da “economia mínima” para tornar uma lista suficientemente atraente para os primeiros adotantes. Acrescentar a reputação social também poderia resolver o problema do “vote memeing”, se os atores maliciosos pudessem perder a sua reputação ou se as suas contas pudessem ficar numa lista negra. Tal configuração também poderia mitigar os círculos de votação e alguns casos de ataques de compra de votos.

Além disso, a abordagem de Mike Goldin não leva em conta possíveis problemas de “free-rider“, onde alguns detentores de tokens podem optar por permanecer passivos, simplesmente investindo num token por razões especulativas. Tais “free-riders” esperam que outros curadores votem de forma confiável, mantendo assim a qualidade da rede elevada. O “free-riding” é um problema típico dos bens públicos. Para ser resolvido, as regras de governança poderiam ser projetadas de forma a que os portadores de tokens sejam forçados a votar. Isto, no entanto, muito provavelmente resultará no chamado “vote memeing” (copiar o comportamento de voto de outra pessoa) ou “coin flipping” (fazer uma votação aleatória para economizar tempo na pesquisa e tomada de decisão), o que também poderia reduzir a qualidade do registo ao longo do tempo. Embora o conceito de TCR possa ser usado para tornar uma lista descentralizada resistente à manipulação, ele não funcionará num sistema de reputação.

Como os TCR ainda não foram testados publicamente, não está claro quais as regras de governança que funcionarão a longo prazo, e como definir de forma otimizada as variáveis que governam a economia interna de uma lista. Essas variáveis podem variar, dependendo do tipo e do objetivo da lista, como por exemplo: (i) a quantidade de tempo que os detentores de um token têm para submeter os seus votos a uma contestação; (ii) a quantidade de tempo que os detentores do token têm para revelar os seus votos a uma contestação; e (iii) a percentagem de votos necessária para que um determinado resultado surta efeito. Um desafio na definição dessas variáveis poderia ser a quantidade de tempo que os detentores do token têm para contestar um pedido. Se for definido por um período alargado de tempo, os detentores do token podem-se esquecer de emitir os seus votos. Mudanças nos parâmetros das regras de governança do token podem ser votadas de forma similar à forma como novos pedidos de registo são votados. Para propor um novo mecanismo de governança, os detentores de tokens poderiam bloquear os seus tokens e submeter o pedido à votação de todos os outros detentores de tokens. As aplicações de um novo mecanismo de governança poderiam ser avaliadas da mesma forma que as aplicações para o registo são votadas, o que significa que elas estariam sujeitas aos mesmos vetores de ataque.

 

Outros Tipos de TCR

Têm sido feitas propostas alternativas sobre como modificar o conceito inicial introduzido por Mike Goldin, para mitigar alguns dos vetores de ataque descritos acima, ou para adicionar qualidade de informação à lista. As regras de governança das variações do TCR mencionadas abaixo não podem ser explicadas em detalhes neste capítulo, mas podem ser pesquisadas online (verifique as referências no final do capítulo).

Ordered TCR: TCR simples não são ordenados, o que significa que são apenas entradas que vieram a ser incluídas na lista. Os curadores votam para incluir ou excluir e decidem sobre o ranking de cada entrada na lista. Cada lista tem uma classificação exclusiva, o que significa que duas listagens não podem ter o mesmo ranking. O número de entradas pode ser limitado ou ilimitado.

Graded TCR: são uma simples variação de um TCR ordenado onde duas listagens podem ter a mesma quantidade de pontos de reputação. As listagens podem ter o mesmo ranking sem ocupar um índice único. Estes oferecem um melhor sinal sobre o alcance qualitativo de uma listagem.

Layered TCR: são mais completos, uma vez que introduzem diferentes camadas de aceitação. Numa primeira fase de qualificação, uma listagem poderia qualificar-se através de algumas regras predefinidas, e teria de cumprir alguns critérios adicionais para se qualificar para o nível seguinte, o que poderia ser útil para construir uma hierarquia mais sofisticada, permitindo uma maior diversidade ou subjetividade. Tal abordagem poderia aumentar a qualidade geral de uma lista.

Nested TCR são listas onde as entradas de uma listagem têm apontadores para outras listas. Podem ser usados para refletir relações entre atributos classificados numa lista e atributos da mesma lista que são classificados numa outra lista.

Combinatorial TCR permitem-nos visualizar um conjunto de itens numa lista. Os portadores de tokens podem definir coletivamente conjuntos, intervalos e parâmetros aceitáveis.

Continuous TCR combinam modelos de token contínuos com TCR para criar um mercado líquido para curadoria. Em vez de gerar e pré-vender tokens num ponto específico no tempo, os tokens são cunhados de acordo com uma curva algorítmica pré-determinada. O valor do registo é uma função da utilidade da lista e determina se ele pode atuar como um “Schelling point” natural. Um Schelling point, neste contexto, refere-se a uma lista à qual a maioria dos utilizadores concordaria, na ausência de comunicação. Continuous TCR são úteis para refletir a ”Long Tail” de categorização que não era possível ou viável antes.

Embora a proposta clássica dos TCR possa ter casos de uso limitados, o surgimento de propostas mais complexas e sofisticadas é um fenómeno interessante a seguir. Cada vez mais projetos estão a começar a implementar aspetos de várias propostas de TCR no seu design de tokens. Relevant” está a construir  um protocolo de reputação que combina critérios subjetivos com TCR. Eles querem usar isso para construir um jornal de notícias social resistente a fake-news, usando métricas qualitativas apoiadas em token, valorizando a qualidade sobre os cliques. Outros exemplos de projetos que usam TCR no seu design de token são AdChain”, Distric0x“, e Messari“.

 

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Se pretendesse tokenizar o seu negócio ou comunidade e torná-lo pronto para a Web3, como precisaria de abordar o seu token design? Que perguntas tem de fazer a si próprio? De que know-how precisa na sua equipa para poder “desenhar” ou “engendrar” adequadamente estes tokens? O objetivo deste capítulo é compreender que questões são relevantes no processo de concepção e engenharia de um novo sistema de tokens, dependendo do tipo de token que pretende criar.

As abordagens de “design thinking” encontraram uma adoção generalizada nas práticas de design de produto de startups e scaleups da Web2, com um foco particular no design centrado no utilizador ou no design centrado no ser humano. O termo “design thinking” data da década de 1950 e encontrou ampla adoção na comunidade empresarial ao longo da década de 1990. O objetivo era aplicar técnicas de criatividade para novas técnicas de resolução de problemas que fossem orientadas para a solução, mas holísticas na sua abordagem. Abordagens de design thinking ajudam a planear estrategicamente conceitos para qualquer nova tecnologia, produto ou serviço. O processo varia desde a definição do problema, idealização (formação de ideias ou conceitos), estratégias focadas na solução, modelagem, prototipagem, testes e avaliação, incluindo ciclos de feedback interativos dos mesmos.

Com a emergência da Web3, o termo “engenharia” está a ser usado no contexto da concepção de sistemas de tokens por uma crescente “token engineering community[1]. A motivação por detrás do uso da palavra engenharia (ao invés de design) é fazer justiça à natureza infraestrutural e de missão crítica das redes Web3 e de muitas das suas potenciais aplicações. Trent McConaghy afirma que, “engenharia” envolve análise, design e verificação rigorosa de sistemas; tudo assistido por ferramentas que conciliam teoria e prática”. A engenharia também é uma disciplina de responsabilidade: ser ética e profissionalmente responsável pelas máquinas que constrói, como ilustrado pelas “Tacoma Narrows Bridge Viewings and Iron Rings”. Ele foi provavelmente a primeira pessoa a usar o termo “engenharia de tokens”, esperando que “o design do ecossistema de tokens também se tornasse um campo de análise rigorosa, design e verificação. Tal processo teria ferramentas que conciliassem teoria com prática. Seria guiado por um senso de responsabilidade”.

Os termos “design” e “engenharia” estão intimamente relacionados, mas não são os mesmos. Pelo contrário, eles complementam-se um ao outro. Enquanto o termo “design” pode ser um termo mais conhecido e intuitivo, carregando um significado mais subjetivo, criativo e até mesmo artístico, o termo “engenharia” tende a trazer à tona os aspetos técnicos, a composição de partes inertes para criar um todo previsível e robusto. “Um projeto é um plano ou especificação para a construção de um objeto ou sistema ou para a implementação de uma atividade ou processo, ou o resultado desse plano ou especificação na forma de um protótipo, produto ou processo”[2].Engenharia refere-se ao uso de princípios científicos para projetar e construir máquinas, estruturas e outros itens, incluindo pontes, túneis, estradas, veículos e edifícios”[3]. O design é, portanto, uma parte de um processo de engenharia. O termo “projeto de engenharia” é usado para descrever a parte do processo de engenharia que é aberta e, em última análise, mais subjetiva.

À semelhança da engenharia eletrotécnica e ao projeto de políticas públicas, a engenharia token assenta sobre análise rigorosa, projeto e verificação de sistemas e suas suposições. Os seus pressupostos precisam ser auxiliados por ferramentas que conciliem teoria e prática. No entanto, ao contrário da engenharia eletrotécnica, projetar o comportamento humano é muito mais parecido com dirigir as economias nacionais e desenhar políticas públicas, pois requer técnicas de modelagem muito mais “difusas”. Com o surgimento da Inteligência Artificial e de melhores ferramentas de simulação, podemos ser capazes de projetar e implementar tokens mais efetivos e voltados para o propósito, que também contribuem para distribuições de probabilidade desconhecidas, comportamentos de agentes desconhecidos ou adversos, potenciais externalidades de rede e “tragédia dos comuns” incorridos para outras partes da sociedade.

Enquanto a comunidade de “engenharia token” aponta para a necessidade de práticas rigorosas de engenharia de software, muitas vezes me parece que nas teorias delineadas e práticas vividas, ela concentra-se principalmente no que eu chamaria de aspetos de “engenharia técnica” de um sistema token. Um olhar sobre a composição dos membros da equipe da maioria das Blockchain/Web3/Token Startups reflete muito bem essa tecnocentricidade. A engenharia, no entanto, é a prática de criar uma tecnologia que, em última análise, tem sempre um objetivo social. Olhar para a engenharia através de uma lente puramente tecnológica perpetua uma mentalidade redutora sobre o “porquê” e o “como” construímos a tecnologia.

Parece haver um consenso crescente da necessidade de usar o termo “engenharia” no sentido mais amplo, quando se projeta um sistema token. A Web3 com suas ledgers distribuídas e contratos inteligentes fornece uma camada de governança e uma camada económica para a Internet. Se algo de errado acontecer, os danos colaterais são elevados, como vimos com os ataques exploratórios à “TheDAO” em 2016 ou aos contratos multi-assinatura “Parity” em 2017, que resultou em milhões de Euros drenados de um ou mais contratos inteligentes, ou os mais recentes DeFi Hacks de 2020. Portanto, sugiro que façamos uma distinção explícita entre os aspetos de “engenharia técnica”, “engenharia legal”, “engenharia económica” e “engenharia ética” de um token.

 

 

[1] http://tokenengineering.wikidot.com/

[2] https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Design&oldid=943088539

[3] https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Engineering&oldid=943637749

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Ao criar um sistema token, é preciso decidir se é necessário criar um token de infraestrutura ou um token de aplicação, e como implementá-lo tecnicamente. Os “tokens de infraestrutura” são tokens que direcionam redes Blockchain públicas (primeira camada) ou protocolos de segunda camada, como canais de Estados, ou outros protocolos Web3, como redes de armazenamento de ficheiros distribuídos (mais: Parte 1 – Web3, a Web de Estados). Estes tokens de infraestrutura são orientados a um propósito, incentivando a manutenção coletiva de tais redes. As questões de design mais importantes no processo de engenharia estão relacionadas com questões de segurança, escalabilidade e privacidade.

Os aspetos de segurança abordam o desenho dos mecanismos criptoeconómicos para fornecer o nível de segurança necessário (mais: Parte 1 – Segurança de Tokens).

Os aspetos de escalabilidade abordam o trade-off entre segurança, descentralização e escalabilidade. Manter a segurança e um alto nível de descentralização enquanto se permite a escalabilidade é uma questão de engenharia com uma variedade de trade-offs. Diferentes técnicas de escalabilidade, tais como sharding, interoperabilidade, canais de Estados e ferramentas criptográficas alternativas que reduzem o escrutínio das transações, estão atualmente a ser testadas para fazer face a essas questões (mais: Anexo – Escalabilidade).

Os aspetos de privacidade abordam as questões de que tipo de criptografia deve ser usada para permitir o “privacy-by-design” mais adequado. Em redes Blockchain iniciais, os dados incluídos num token e as suas trocas são públicos para qualquer pessoa. Através de mecanismos criptográficos adicionais, as concessões de acesso podem ser geridas de uma forma mais respeitadora da privacidade (mais: Parte 3 – Tokens de Privacidade). No entanto, isso não acontece gratuitamente, pois toda criptografia adicional é um custo para somar à invocação do contrato.

 

Os “tokens de aplicação” são geridos por uma ledger distribuída subjacente e outras redes Web3. O processo de engenharia técnica terá de considerar a infraestrutura e padrões de tokens a utilizar. Além disso, ele precisa considerar as potenciais necessidades de interoperabilidade do sistema token.

Infraestrutura utilizada: na medida em que os tokens de aplicação são geridos por uma ledger distribuída, todas as necessidades de privacidade, escalabilidade, descentralização e segurança do token terão de ser satisfeitas pela infraestrutura subjacente. As restrições da infraestrutura, portanto, precisam ser consideradas ao escolher entre os trade-offs de uma solução e de outra.

Interoperabilidade: apesar das ledgers distribuídas terem atualmente uma interoperabilidade limitada, há soluções no horizonte que podem favorecer um sistema em detrimento de outro. Dependendo de quanta interoperabilidade um sistema token irá requerer a longo prazo, questões de infraestrutura precisam ser consideradas.

Standards: o processo de engenharia técnica pode escolher a partir de uma lista crescente de contratos token standardizados. Os padrões token usados dependem das propriedades que um token deve ter (privacidade, fungibilidade, transferibilidade, data de expiração), e as propriedades dependem da finalidade do token, levando em conta todas as restrições económicas, legais ou éticas.

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

Engenharia Legal de tokens é a tarefa predominante quando lidamos com “sistemas de tokens simples”. O termo “simples” é comumente usado no domínio dos sistemas complexos[1]. No contexto da engenharia do token, o termo “simples” refere-se ao facto de que a dinâmica do negócio ou modelos de governança potencial de um token são bem conhecidos, como no caso de (i) dinheiro do banco central, (ii) títulos e outros ativos, (iii) processos de identificação e certificação, (iv) direitos de voto, (v) vales e coupons, ou (vi) bilhetes de entrada e outros direitos de acesso. Os respetivos processos comerciais ou de governança desses casos de uso têm sido testados durante décadas, às vezes séculos. Ao longo dos anos, foram colmatadas potenciais lacunas num processo de tentativa e erro, e existe regulamentação em vigor. A tokenização de tais processos de negócios/governança requer predominantemente engenharia legal, que se refere a tornar a tokenização dos ativos existentes, direitos de acesso e direitos de voto legalmente compatíveis com a legislação local. A engenharia legal, portanto, refere-se à tokenização dos modelos tradicionais de governança, onde contratos inteligentes substituem muitas das operações existentes baseadas em humanos/papel/servidor-cliente. Questões relevantes no processo de engenharia legal de tokens de identidade, tokens de divisas, tokens de bens ou tokens de direitos de voto são:

* Que jurisdição(ões) transnacional/nacional/local deve ser considerada(s)?

* Que órgãos reguladores podem estar preocupados?

* Como fazemos o design dos contratos inteligentes de forma a que estejam em conformidade com a lei?

* A jurisdição precisa ser alterada para atender às novas possibilidades/dinâmicas da tokenização e da Web3?

[1] “A teoria dos sistemas complexos investiga as relações entre as partes do sistema com os comportamentos coletivos do sistema e o ambiente do sistema”. Os sistemas complexos diferem dos outros sistemas, na medida em que o comportamento do sistema não pode ser facilmente inferido a partir das mudanças de Estados induzidas pelos atores da rede. Propriedades como a emergência, não-linearidade, adaptação, ordem espontânea e loops de feedback são típicas de sistemas complexos. Abordagens de modelagem que ignoram tais dificuldades produzirão modelos que não são úteis para a modelagem e direção desses sistemas”. Voshmgir, S.; Zargham, M.: “Foundations of Cryptoeconomic Systems” (ver referências)

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

A engenharia económica é predominantemente necessária ao projetar “sistemas de tokens complexos”. Os incentivos e regras de governança da comunidade estão ligados a “tokens orientados a propósitos” que direcionam a ação coletiva da comunidade através de mecanismos automatizados (mais: Parte 4 – Tokens orientados a propósitos). Os modelos de governança são na sua maioria desconhecidos e um resultado da miríade de novas possibilidades de regular a ação coletiva através da Web3 na ausência de intermediários, usando contratos inteligentes e ledgers distribuídas. Muitos referem-se a estes tokens como “tokens de utilidade”, “tokens de trabalho”, ou “tokens de consenso”. O que todos esses tokens têm em comum é que eles orientam a ação coletiva para um propósito comum. Tais propósitos comuns poderiam ser consenso, compartilhamento de recursos, reputação e curadoria, redução das emissões de CO2, etc. As ferramentas necessárias para projetar tais sistemas podem ser encontradas nas ciências económicas, ciências das redes, sistemas ciberfísicos e sistemas sociotécnicos.

A ciência económica trata dos estudos das instituições económicas, políticas e ética, incluindo questões de alocação de recursos, disparidades de riqueza e dinâmica de mercado no contexto da produção, distribuição e consumo de bens e serviços.

A ciência das redes estuda redes complexas, desde redes biológicas a redes clássicas de telecomunicações, redes de computadores a redes sociais. Os métodos utilizados incluem a matemática, a física, a informática e a sociologia.

Os sistemas ciberfísicos são mecanismos controlados ou monitorizados por algoritmos baseados em computador, fortemente integrados com a Internet e seus utilizadores. Exemplos incluem redes de energia e sistemas de transporte em larga escala, ambos compartilhando a propriedade de que o comportamento não controlável de atores humanos pode criar condições indesejáveis ou mesmo inseguras de forma totalmente contraintuitiva.

Os sistemas sociotécnicos foram cunhados pela primeira vez nos anos 40 e referem-se à interação dos aspetos sociais e técnicos das organizações e comunidades privadas e públicas, on-line e no mundo real. Referem-se aos estudos das complexas infraestruturas que uma sociedade utiliza, como a Internet e outras redes de comunicação, cadeias de abastecimento e sistemas legais, e comportamento humano. A relação pode ser simples (relações de causa e efeito lineares) ou complexa (não-linear e difícil de dirigir e prever).

As principais questões que precisam de ser respondidas em tais processos de design são:

O objetivo do sistema de tokens: que tipo de sistema se pretende criar?

Quantos tipos diferentes de tokens são necessários? Alguns sistemas token têm vários tipos de token para conduzir a ação coletiva dentro da rede. Exemplos que foram explicados nos capítulos anteriores deste livro são os tokens da rede social descentralizada Steemit (STEEM, SP, SBD) ou os tokens estáveis da MakerDAO (DAI, WETH, PETH, PETH, SIN, MKR). Outros sistemas token só têm um token, como a rede Bitcoin. Pode-se assumir que quanto mais tipos de token, mais complexa é a dinâmica de condução dessa rede.

Finalidade: a definição de uma finalidade clara do token é necessária para o processo de desenho posterior. Tendo analisado mais de 100 sistemas de tokens, parece que quanto mais clara a finalidade, mais resiliente a rede. A minha opinião pessoal é que um token deve ter apenas um propósito. Se se tiver múltiplos propósitos, provavelmente mais tipos de tokens será necessários. Caso contrário, o design do mecanismo do sistema token pode-se tornar muito complexo.

Propriedades: uma vez definido o propósito, pode-se derivar as propriedades do token, levando em conta todas as restrições económicas, legais ou éticas que poderiam influenciar a dinâmica de um sistema token. Exemplos para a escolha de propriedades e dinâmica potencial são: (i) Transferibilidade: os tokens estão vinculados a uma identidade única (pessoa ou instituição) ou têm capacidade de transferência limitada? Dependendo do caso de uso, a resposta seria diferente. A transferibilidade limitada reduz automaticamente a liquidez de um token, tornando-o inviável como meio de troca. Os tokens de reputação, por exemplo, precisam de estar vinculados à identidade de uma pessoa ou organização na rede e não devem ter qualquer possibilidade de transferência. Os tokens de reputação transferíveis podem ser negociados no mercado livre, tornando-os não-indicativos para comportamento pessoal na rede, como no caso dos tokens “Steem Power” no ecossistema Steemit. (ii) Fungibilidade: se os tokens são idênticos e não ligados a uma identidade, a política monetária de um sistema token, incluindo a taxa de inflação, precisa ser determinada porque os tokens podem agir como meio de troca (token de pagamento). (iii) Data de expiração: se um token tiver uma data de expiração, isso reduzirá a inflação do token. Uma data de validade também pode ser desejável no caso de cupões ou bilhetes de entrada e outros direitos de acesso.

Proof-of…?: as propriedades de um token são a base para modelar um mecanismo tolerante a falhas para orientar a rede em prol de um objetivo coletivo. O objetivo de tal mecanismo tolerante a falhas é definir sobre qual comportamento os tokens são cunhados, de modo que ele seja resistente contra corrupção, ataques ou erros. O Proof-of-Work provou ser resiliente para atingir o objetivo (transações P2P). O token de reputação da rede Steemit (Steem Power), por outro lado, não tem um desenho de token resiliente para se adequar ao seu propósito (para servir como um token de reputação tolerante a falhas que é indicativo de conteúdo de qualidade).

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

O design de sistemas token também requer um pensamento ético e político. O tipo de sistema que queremos criar não é uma questão tecnológica, mas uma questão socioeconómica e política. Questões políticas, morais e éticas terão que ser atendidas, idealmente antes da concepção de tais sistemas. Se não conseguirmos incorporar as questões éticas no processo de concepção de tais sistemas, criaremos um “protocol bias” (viés de protocolo). A história tem mostrado que, eventualmente, todas essas questões precisarão ser resolvidas. Entretanto, se isso for feito pós-facto, depois de um sistema ser criado, esses vieses são difíceis de reverter devido à inércia do sistema (veja o escândalo da Cambridge Analytica e as discussões sobre privacidade, controlo e governança das redes sociais que se seguiram após o escândalo e os desafios que a rede do Facebook está neste momento a enfrentar). No entanto, não temos de reinventar a roda. Podemos aplicar a ética da engenharia[1] à criação de sistemas baseados na Internet, algo que Silicon Valley e outros grandes atores da era da Internet falharam em fazer. Em termos de design de token, duas das mais importantes questões éticas e políticas são:

Transparência vs. Privacidade: o trade-off entre interesses públicos e privados é uma discussão política secular que tem sido estudada pela ciência política e sociológica. Embora a privacidade do indivíduo seja importante, ela pode minar o interesse público. Tomemos o caso da transparência da cadeia de abastecimento: embora a maioria dos consumidores provavelmente concorde que mais informação sobre o que acontece ao longo da cadeia de abastecimento de bens e serviços seja o que eles desejariam, o ato de fornecer tal nível de transparência poderia infringir os direitos individuais (ou seja, uma câmara numa fábrica para monitorizar os direitos dos trabalhadores também viola a privacidade dos trabalhadores, dependendo de como esses dados são revelados). É, portanto, crucial que contratemos cientistas sociais com o know-how adequado para responder a tais perguntas.

Estruturas de poder: o trade-off entre descentralização, segurança e escalabilidade é um tópico muito discutido em redes Blockchain. O trilema da descentralização levanta a questão política de quanta descentralização é necessária/desejada dependendo do caso de uso e dos valores de uma comunidade. Quanto mais descentralizada, mais lenta é a rede, e vice-versa. Caso contrário, é preciso sacrificar a segurança da rede. As estruturas de poder também são importantes ao projetar tokens de reputação numa rede social como Steemit.com. No seu projeto atual, a maioria dos tokens de reputação (Steem Power) são da propriedade de um punhado de grandes players da rede, decidindo sobre que história é relevante ou não.

 

 

 Para cobrir todos os aspetos mencionados acima, é necessária uma equipa interdisciplinar com a experiência necessária em todos os quatro campos do processo de engenharia que trabalhe de mãos dadas. Ter advogados, economistas e cientistas sociais como parte da equipa, além dos engenheiros técnicos, no nível executivo e abaixo, será fundamental para o desenvolvimento de sistemas token resilientes. Contudo, o trabalho interdisciplinar requer tempo e esforço, já que as quatro categorias se sobrepõem e a comunicação entre as disciplinas requer alguns esforços de aceleração. A abordagem rápida e desordenada da Web1 e da Web2, onde o processo de desenvolvimento foi bastante orientado de forma “hack now and pivot later” (resolve agora e arranja depois), não funciona bem na Web3. Uma vez que o viés está no protocolo, é difícil reverter as mudanças sem o consenso de todos os atores da rede. Precisamos, portanto, de sair do “desenvolvimento baseado em memes” de Silicon Valley para um “desenvolvimento baseado em engenharia” que inclua todos os aspetos do processo de engenharia. Os “sistemas token simples” provavelmente exigirão predominantemente mais engenharia legal e tecnológica, enquanto os “sistemas token complexos” precisarão de um bom equilíbrio de todas as quatro áreas.

[1] “a ética da engenharia identifica uma precedência específica com respeito à consideração do engenheiro pelo público, clientes, empregadores e pela profissão. Muitas sociedades profissionais de engenharia prepararam códigos de ética. Alguns datam das primeiras décadas do século XX (que) foram incorporados, em maior ou menor grau, às leis regulatórias de várias jurisdições”. (https://en.wikipedia.org/wiki/Engineering_ethics#General_principles). Ou, como afirma a American Society of Civil Engineers: “Os engenheiros devem ter a segurança, a saúde e o bem-estar do público em primeiro lugar e devem esforçar-se por cumprir os princípios do desenvolvimento sustentável no desempenho das suas funções profissionais.”

O conteúdo aqui apresentado foi retirado do livro “Token Economy” de Shermin Voshmgir, traduzido e adaptado para português por mim, José Rui Sousa, em conjunto com António Chagas, Courtnay Guimarães e Joana Camilo, publicado sob uma licença Creative Commons CC BY-NC-SA apenas para uso não-comercial.

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